Enfoque

A Lei da Destruição e a Guerra

O presente artigo procura contribuir para a reflexão e contextualização das questões da lei da destruição (Livro dos Espíritos, III parte, capítulo VI), dando destaque para o polêmico e sempre atual tema da guerra.

Conforme apresentada por Kardec, a lei de destruição possui similaridade com o conceito de impermanência da filosofia budista, que nos mostra que tudo no universo está sempre mudando, está sempre em transformação e que precisamos ter sabedoria para não cair na ilusão de criar apego gerador de sofrimento.

Entretanto, Kardec e os espíritos, ao contrário da abrangente lei de impermanência budista, limita a ideia de permanente transformação, apenas aos seres vivos, não ao mundo material.

728. A destruição é uma lei da Natureza?
— É necessário que tudo se destrua para renascer e se regenerar porque isso a que chamais destruição não é mais que transformação, cujo objetivo é a renovação e o melhoramento dos seres vivos.

Como bem observa Elias Moraes (1):
“A visão que se tinha do universo na Europa de Kardec, era de algo permanente que, uma vez criado, mantinha-se em eterno funcionamento, como um relógio, comparação que Kardec utiliza por diversas vezes ao longo da sua obra.”

Segundo o psiquiatra Sérgio Lopes (2),
“em nossas vidas, a lei da destruição se expressa frequentemente através de perdas. Perdemos a infância, perdemos a juventude, ninguém cresce, ninguém evolui sem enfrentar perdas. Faz parte da vida perder alguém em algum momento da existência.”

A ideia da impermanência na tradição ocidental foi analisada pelo grego Heráclito no século VI a.C., o filósofo do devir, do vir a ser, afirmava que tudo estava em permanente transformação, “nunca nos banhamos duas vezes nos mesmos rios”, a água do rio está sempre em movimento, constantemente renovada, nunca é a mesma, e nós também não somos os mesmos.

A ideia chave da visão espírita, a síntese de sua filosofia, é a evolução, sendo a destruição uma contingência da necessária renovação. Nada efetivamente “É” tudo “Está” e a destruição é mecanismo do processo de permanente transformação e evolução a que todo o universo está sujeito. Como diz a famosa sentença atribuída a Lavoisier, “Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”.

O capítulo distingue a destruição necessária, provocada pela natureza, da destruição abusiva, provocada pelo homem. Se a humanidade vive hoje uma grave crise ambiental, deve isto apenas a destruição abusiva, ao fato de havermos desrespeitado uma Lei Natural, a Lei da Conservação. Pelo abuso destruímos a natureza que nos sustenta.

Analisa o assassinato em várias circunstâncias, como as guerras ou a legítima defesa. Capítulo polêmico por discutir costumes da época, faz importante condenação do duelo como sendo um assassinato e um suicídio ao mesmo tempo. Afirma que a “honra”, que justificou os duelos até o início do século XX, (e no Brasil ainda é usado para justificar o feminicídio) seria apenas expressão doorgulho e da vaidade. Aliás, os valores da honra nunca foram os do cristianismo. Enquanto este dá importância à intenção, para determinar se há pecado, para aferir a honra de um homem, só conta o que se torna público, as aparências.

Chama a atenção o fato de Kardec inserir três questões sobre a relação do Homem com os animais dentro da lei de Destruição.

734. No seu estado atual, o homem tem direito ilimitado de destruição sobre os animais?
— Esse direito é regulado pela necessidade de prover à sua alimentação e à sua segurança; o abuso jamais foi um direito.

Matar pela segurança, quando a vida humana está em perigo, é ponto pacífico. Mas se na época de Kardec, alimentar-se com a carne era um recurso alimentar importante, atualmente, não podemos mais considerar uma necessidade matar animais para a alimentação.

Na época de Kardec, não se tinha uma boa compreensão dos mecanismos fisiológicos da utilização dos alimentos e de como se pode adequar e melhorar o valor nutritivo da alimentação. Não havia ainda a noção de que precisamos de nutrientes e não de alimentos, sendo hoje um mito afirmar que a proteína da carne é indispensável, pois nosso organismo não precisa de proteínas, mas de aminoácidos que podem ser todos encontrados nos alimentos de origem vegetal.

A questão 735 condena a caça esportiva, outro costume popular, como sendo uma inútil saciedade do prazer de destruir e faz o alerta: “toda destruição que excede os limites da necessidade é uma violação da lei de Deus.” A resposta da espiritualidade é clara e taxativa, a Humanidade não tem o direito de matar por prazer, mesmo que seja pelo prazer de comer a carne.

O capítulo posiciona-se também contra a pena de morte sob qualquer circunstância, atribuída invariavelmente ao atraso e a ignorância, prevê seu desaparecimento como sinal de progresso da humanidade. Ainda hoje, a pena de morte ainda é lei em mais ou menos 40% dos países do mundo, inclusive em países desenvolvidos como EUA e Japão, sendo a China o país que mais executa no mundo. Em alguns países onde a pena de morte é proibida, ocorre a chamada “execução informal”, feita pela violência policial ou por grupos de extermínio. O Brasil, por exemplo, tem a polícia que mais mata e é morta em todo mundo.

761 A lei da conservação dá ao homem o direito de preservar a sua própria vida; não aplica ele esse direito quando elimina da sociedade um membro perigoso?
– Há outros meios de se preservar do perigo, sem matar. É necessário aliás, abrir ao criminoso e não fechar a porta do arrependimento.

Apesar da pena de morte ser lei em toda Europa na época, Kardec demonstra, mais uma vez, fina sintonia com o pensamento iluminista. Em Paris,
Cesare Beccaria havia feito muito sucesso na segunda metade do século XVIII. Considerado um dos pais do direito penal moderno, Beccaria argumentava racionalmente pela abolição da pena de morte e da tortura, consideradas como inúteis, ineficazes e desumanas. Para Beccaria, assim como para Kardec, o meio mais seguro e eficiente de evitar que os homens praticassem o mal seria a educação.

 

Flagelos Destruidores

Sobre os flagelos destruidores coletivos, Kardec e os espíritos não atribuíram sua explicação como sendo resgate de débitos passados ou “queima de carma coletivo”. Os flagelos não são justificados como expiação, fruto da lei de causa e efeito (como muitos espíritas insistem em interpretar), mas por um ângulo mais positivo, para acelerar o progresso da humanidade como a “poda renova uma árvore”, “fazer a humanidade avançar mais depressa, realizando em alguns anos o que necessitaria de muitos séculos”.

Ainda que possamos admitir que o processo expiatório, possa estar presente no fenômeno dos flagelos destruidores, (como expresso na resposta da 741 “…cada indivíduo recebe, em menor ou maior proporção, a parte que lhe cabe…”) não é a sua lógica que motiva a existência desses flagelos.

José L. Boberg (3) lembra que:
“Tsunamis, terremotos, erupções vulcânicas existiam mesmo quando o ser humano não habitava a Terra. Independente da condição moral da criatura, ao encarnar neste planeta, todos estão sujeitos aos efeitos dos fenômenos da natureza. É, portanto, uma contingência, ficando totalmente por conta do imaginário, a ideia de que todos atingidos por esses fenômenos estariam “resgatando dívidas cármicas.”

Elias Moraes (4) comenta:
“Imagine toda a grandeza da logística, toda a complexidade da operação para reunir nas zonas litorâneas de dois continentes, num total de treze países atingidos, as 288 mil pessoas mortas, entre turistas e nativos, (fora as dezenas de milhares de feridos e os 5 milhões de desabrigados) na grande tsunami do Oceano Índico em 2004?”

Seguindo esse raciocínio, Wladisney Lopes (5) indaga:
“Se isto fosse um fato, qual a diferença entre os espíritos que trabalharam na execução dessa sentença vingativa e os nazistas, que “convidando” prisioneiros para um banho, os levavam para as câmaras de gás?”.

A mentalidade judaico-cristã, também marca especial presença na resposta 764, em que é feita a defesa veemente da pena de Talião como sendo “… a justiça de Deus, é ele quem a aplica…sois punidos naquilo em que pecais, aquele que fez sofrer seu semelhante estará numa situação em que sofrerá o mesmo.”

A questão 764 é um claro exemplo de quanto Kardec, em várias questões, se retira do terreno da filosofia e é dominado pela força da tradição da teologia judaico-cristã.

O mesmo raciocínio se faz presente na questão 745: “necessitará de muitas existências para expiar todos os assassínios de que foi causa, porque responderá por cada homem cuja morte tenha causado para satisfazer a sua ambição.”

Ainda em termos de mentalidade, o capítulo chama a atenção pelo eurocentrismo quando Kardec faz referência a costumes diferentes de outros povos, como nas questões 736 e 753 ou ainda na 755 em que atribui crueldade aos “povos primitivos ou selvagens”.

Segundo o historiador Diego Moraes, (6), na abordagem da guerra e dos flagelos destruidores: “é reproduzida a mentalidade católica do século V de Santo Agostinho, para quem a Providência Divina usava da guerra com o objetivo de castigar a maldade humana e seus pecados e como teste para os justos que depois da prova passariam a um melhor destino. Todo castigo divino seria corretivo, regenerativo, purificando pelo sofrimento a humanidade.

Em várias respostas essa mentalidade católica medieval marca presença, como na 738 “é necessário castigar o homem pelo seu orgulho e fazê-lo sentir a própria fraqueza” e também como instrumento de provação dos justos, “…as vítimas terão noutra existência uma larga compensação para os seus sofrimentos se souberem suportá-los sem lamentar.” (738.b) São provas que proporcionam ao homem a ocasião de exercitar sua resignação ante a vontade de Deus.(740)

Dentro dessa perspectiva providencialista católica, que as respostas dos espíritos expressam, inclusive aquilo que aparenta ser um mal, certamente acaba se revelando como um bem para a humanidade, seja como castigo divino a ser compreendido, possibilitando o resgate de débitos passados, seja com causa indireta de um bem maior futuro, como ter o progresso acelerado e receber “larga compensação para os seus sofrimentos se souberem suportá-los sem lamentar.”

A Providência fustiga nosso orgulho e purifica nossa fé pela incompreensível execução de seus insondáveis desígnios. Devemos crer com resignação, a fim de não nos atrevermos, com a temerária vaidade humana, a censurar Sua obra.

 

Da Guerra

“Qualquer guerra que já se travou, foi uma guerra injusta, exceto, é claro, aquela travada contra o inimigo”. (Wyndam Lewis)

O capítulo da Lei da Destruição apresenta o importante tema da guerra logo após abordar os flagelos destruidores da natureza. Essa simples aproximação provoca a percepção de que não haveria muita distância entre a violência deliberada produzida pelo ser humano com a violência das mais variadas formas de catástrofes naturais. Produz a confusão entre mecanismos naturais que estão fora de nosso controle, com as escolhas e decisões que tomamos coletivamente ao optar pela violência como solução dos conflitos. Desse provocado encontro, a naturalização da violência humana é ao mesmo tempo um pressuposto e seu inevitável resultado.

742- Qual a causa que leva o homem à guerra?
– Predominância da natureza animal sobre a espiritual e a satisfação das paixões. No estado de barbárie os homens só conhecem o direito do mais forte, e é por isso que a guerra, para eles, é um estado normal. A medida que o homem progride ela se torna menos frequente, porque ele evita as suas causas e quando se faz necessária ele sabe adicionar-lhe humanidade.

A reflexão sobre essa questão é um pouco extensa e será dividida em três partes:
1ª- A primeira parte da reflexão questiona como podemos conciliar a expressão “a medida que o homem progride a guerra se torna menos frequente… e ele sabe adicionar-lhe humanidade” com a violenta história do século XX que afronta a lógica dessa expressão e desafia a própria ideia de progresso?

Na época de Kardec, não participava do horizonte de expectativas europeu, imerso na ilusão do progresso iluminista e da superioridade do homem branco, que ainda haveriam guerras generalizadas entre as nações tidas por “mais civilizadas”, com tamanha brutalidade e crueldade como as duas guerras mundiais. Predominava a crença na impossibilidade de um conflito de grandes proporções entre países que eram considerados os portadores do mais alto grau de civilização.

O século XIX alimentou a utopia de um processo contínuo de um aperfeiçoamento da conduta moral e de um melhor convívio entre os homens civilizados. Essa ilusão caiu por terra quando o sonho da belle époque transformou-se no pesadelo europeu da guerra total de 1914.

De acordo com o historiador Eric Hobsbawm:
“o século XX foi o mais assassino que temos registro, tanto na escala, na frequência e na extensão da guerra […] como também pelo volume único das catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até os genocídios sistemáticos”.

Calcula-se que no século XX mais de 100 milhões de pessoas perderam a vida em guerras. Genocídio armênio, judeu, cigano, polonês, chinês, bósnio, ruandês, e mais recentemente, palestino, desde a 1ª Guerra Mundial, nossa época ainda está sendo marcada por grandes genocídios onde parece ocorrido a suspensão de quaisquer considerações morais.

Por acaso, com todo o progresso tecno-científico do século XX, as guerras se tornaram “menos frequentes”? Seria “adição de humanidade” explodir bombas atômicas sobre a população civil inimiga? Promover o horror do Holocausto? Não reconhecer direitos dos vencidos ou dos prisioneiros? Promover massacres sobre a população civil de países invadidos militarmente?

2º) A segunda parte da reflexão sobre a questão 742 questiona se existiriam “guerras necessárias”? Será que a violência de uma guerra pode ser justificada?

No Ocidente, a busca da justificação moral das guerras tomou a forma da teoria da “guerra justa”, que veio a se tornar um dos mais difíceis labirintos morais. Tanto Santo Agostinho como Tomás de Aquino desenvolveram argumentação tentando conciliar os valores cristãos com as guerras que podiam ser necessárias e justas.

Via de regra, invoca-se o direito de legítima defesa para justificar um conflito. A violência seria vista sempre como uma resposta ou uma reação ao que o outro é e, portanto, ao que ele poderia fazer, ainda que não tenha feito nada. Em todos os conflitos, a origem da violência estaria sempre no outro. É preciso que o culpado seja o outro e é preciso que a violência se traduza em preservação. Os governos envolvidos em guerra, mesmo sendo os agressores, em busca de legitimação, costumam alegar a defesa da pátria ou a defesa da liberdade e dos direitos humanos.

Seguindo esse raciocínio, se depreende que, em uma guerra, parece difícil poder haver duas razões justas para o combate, com os dois principais lados corretos em suas demandas. A guerra, assim, é vista como uma díade, ataque versus defesa, justo versus injusto, certo versus errado. Essa lógica é expressa claramente por Kardec ao formular a questão:

542- “Numa guerra a justiça está sempre de um lado; como os Espíritos tomam
partido a favor do errado?”.
– Sabeis que há espíritos que só buscam a discórdia e a destruição. Para eles a
guerra é a guerra; a justiça da causa pouco lhes importa.

Essa questão chama atenção pela forma ingênua que Kardec trabalha a sua subjetividade de maneira inconsciente e o quanto ele possui a ideia da guerra justa como um pressuposto. O inimigo, uma vez que estaria do lado errado, só poderia estar sendo assessorado por espíritos da mais baixa categoria da escala espírita, enquanto que os de categoria elevada estariam todos do lado da justiça, ou seja, do nosso lado.

Precisamos também considerar que é um tanto subjetiva a legítima defesa, pois nossa reação depende de um juízo, uma avaliação da situação de ameaça, do momento, da forma e dos meios de nossa reação para repelir as ameaças.

Principalmente, depois que Ghandi liderou a libertação de todo subcontinente indiano, com o militante princípio da não-violência, o uso da violência não pode mais ser considerado o único método eficaz para a resolução de conflitos e de luta contra as injustiças. Por acaso, a violência e a guerra era uma opção para Jesus resolver os conflitos?

Ao admitir a eventual necessidade da guerra, a resposta da 742 entra em contradição com a resposta de outra questão do Livro dos Espíritos:
638O mal parece, algumas vezes, ser consequente da força das circunstâncias. Tal é, por exemplo, em certos casos, a necessidade de destruição, até mesmo do nosso semelhante. Pode-se dizer, então, que há infração à lei de Deus?
— O mal não é menos mal por ser necessário mas essa necessidade desaparece à medida que a alma se depura passando de uma para outra existência; então se torna mais culpável quando o  comete, porque melhor o compreende.

Segundo Marcelo Jasmin (7), “não há como elaborar condições de legitimidade ou razoabilidade para o recurso da violência e da guerra. Fins eticamente justos são mais do que contaminados, são negados, pelos meios através dos quais a violência deliberada se exerce, ainda que evocada como
necessária ou legítima”.

Da mesma forma, para o Espírito que respondeu a questão 638, a violência de um ser humano contra outro seria sempre um mal que exclui necessariamente a presença do bem, e toda necessidade alegada como justificativa torna-se ilusória, na medida em que o espírito evolui e “melhor o compreende.”

3º) A terceira parte do comentário da questão 742 reflete sobre as paixões que levaram a guerra. Foram as paixões determinantes? Quais seriam elas? Será que apenas “a predominância da natureza animal e a satisfação das paixões” seria suficiente para explicar as causas das guerras modernas entre Estados-nação? Todas as explicações sociológicas e geopolíticas seriam dispensáveis para compreender as causas de uma guerra?

O Iluminismo fazia a afirmação de uma razão universal que, com o progresso e a educação, seria capaz de nos emancipar dos obscurantismos e dos instintos animais. Nessa concepção, a paixão descontrolada é a fonte da violência e um mundo de paixões sabiamente controladas pela razão seria um mundo sem violência ou guerras. As ideias de civilização, de razão e de progresso, estariam ligadas necessariamente a paz, enquanto as ideias de instinto, paixão, natureza, seriam negativas e vinculadas à guerra.

A resposta da questão 742 também estaria dentro da lógica da filosofia de Thomas Hobbes, que considera que a relação primeira, imediata e natural dos homens entre si é uma relação de guerra, o que ele chama de guerra de todos contra todos. Para Hobbes seria uma condição da natureza humana ser violento.

O medo é a paixão dominante para Hobbes, mas além dele, o homem seria movido por duas grandes paixões, a cupidez e a vaidade. Para o espiritismo, assim como para os jansenistas, o egoísmo e o orgulho seriam a raiz de todas as nossas paixões e vícios.

Fréderic Gros (8) comenta que na tríade de paixões de Hobbes, a violência seria simplesmente um meio para alcançar um objetivo ou obter outra coisa, a segurança, os bens materiais, a glória e a reputação. Mas para a psicologia, haveria ainda uma segunda tríade de paixões que pode encontrar na destruição do outro uma fonte de satisfação e onde a violência pode ser justificada por ela mesma: a cólera ou raiva, o ódio e a crueldade, onde inclusive pode aparecer um gozo obtido com o sofrimento do outro.

Com essas duas tríades, teríamos uma identificação das paixões vinculadas à violência e as guerras. As grandes explicações filosóficas ou psicológicas tendem a se referir, à totalidade ou a uma parte delas, já que elas não são excludentes, podendo combinar-se entre si.

Mesmo que Ghoethe tenha razão ao afirmar que “nada se faz sem grandes paixões”, a psique do indivíduo não pode ser separada do contexto social. Rousseau já denunciava que a violência era social, produzida pela desigualdade. A guerra, mesmo estando vinculadas às paixões, é antes de tudo um fato social e assim precisa ser compreendida.

Para Isabelle Delpla (9), a explicação da violência pelas paixões revelou-se muito fraca e pouco pertinente para seu esclarecimento. Por isso, ela foi deixada de lado pelos pesquisadores de ciências sociais e pelos filósofos. Insistir na paixão é descartar as dimensões sociais, institucionais e econômicas da violência. Entretanto, não podemos esquecer que a visão de uma violência fria é igualmente insuficiente e ilusória. Segundo Delpla, convém desembaraçar-se da alternativa entre violência passional e violência sem paixão, pois ela é um obstáculo à compreensão dos fenômenos.

Delpla analisando o caso do nazista Eichmann, que participou do Holocausto, exemplifica e resume com clareza esse ponto:
“Eichmann, um antissemita convicto, um nazista fanático, escolheu tornar-se genocida, mas a chave de sua compreensão não se encontra apenas no homem e suas paixões, mas em suas ideias, na sociedade que lhes deu livre curso, no sistema político que as produziu e nas circunstâncias que as fizeram aceitáveis.”
“Suas paixões são produto do nazismo e da sociedade que o produziu. Apesar de existir forte ligação entre as paixões e a guerra, não podemos esquecer que elas também são construções sociais em transformação e que sozinhas não dão conta de explicar a violência social.”

Outra questão que merece uma reflexão crítica é a questão 749:
749- O homem é culpável pelos assassínios que comete na guerra?
– Não, quando é constrangido pela força; mas é responsável pelas crueldades que comete…

Santo Agostinho, ao refletir sobre a participação de um cristão na guerra, já defendia que os soldados não deveriam ser culpados individualmente pelos atos que cometeram por ordem de seu governo.

Os soldados não costumam se ver nem serem vistos, socialmente, como assassinos. Eles estariam no cumprimento de uma missão, justificados e legitimados em sua violência. Mas sabemos que não há mortes numa guerra sem agentes que as executem.

O crescente progresso dos artefatos bélicos modificou duas características dos conflitos bélicos, o distanciamento e a abrangência da ação, o que potencializa a dissociação entre o sujeito da violência e seu “objeto”. A impessoalidade crescente da ação bélica, propiciada hoje por drones e armas eletrônicas, pode ser entendida como sintoma de uma desumanização em escala mais ampla. O piloto do bombardeio, reduzido a mera engrenagem de um sistema que em muito o ultrapassa, quando libera a bomba atômica sobre Hiroshima, não enxerga que volatiliza, em frações de segundo, centenas de milhares de pessoas.

Não se trata de culpa ou inocência, a questão em jogo na questão 749 deve ser de responsabilidade. Diferente de se sentir culpado, a responsabilidade torna o homem consciente, levando-o ao reposicionamento frente a ação.

Fréderic Gross analisando a questão, aponta que não podemos dissociar completamente a responsabilidade da obediência:
“Não sou responsável, já que apenas obedeço a ordens”, ao que pode-se opor outro mantra: “Quando obedeces a outro, não esqueças jamais que antes de tudo, primordialmente, é a ti mesmo que ordenas obedecer” Ou seja, no fundamento de sua obediência há uma decisão livre e responsável. O homem livre obedece porque decidiu obedecer.”

Assim, para Gross:
“Responsabilizar o sujeito político é lembrar-lhe que ele nunca pode se manter completamente isento do sistema do qual participa e das violências sociais que esse sistema produz.”

Adolf Eichmann, estudado por Hannah Arendt, foi responsável pela prisão e transporte dos judeus aos campos de extermínio em toda Europa durante o Holocausto nazista. Em sua defesa, invocou sua lealdade e seu senso do dever, que “apenas obedecia ordens“ e que estaria “constrangido pela força” do sistema, como se o mal para ele, fosse inevitável e que, portanto, não poderia ser imputável a sua vontade.

Arendt com seu conceito de banalidade do mal observou que a máquina de morte do Holocausto nazista foi eficaz e terrível porque foi praticada por funcionários zelosos e obedientes e não por sádicos cruéis ou monstros sanguinários. Para Arendt, a raiz do mal, sua banalidade, consistiria na separação entre a responsabilidade e a obediência, o que torna possível fazer o mal, matar pessoas às centenas, sem experimentar necessariamente, a sensação de fazer o mal.

Seguindo em nossa análise sobre a abordagem da guerra no livro dos Espíritos, encontramos a 744 e seu complemento, 744ª, que juntas, seriam candidatas a serem eleitas uma das mais problemáticas respostas de todo o Livro dos Espíritos.

744. Qual o objetivo da Providência ao tornar a guerra necessária?
— A liberdade e o progresso.

744.a) Se a guerra deve ter como efeito conduzir à liberdade, como se explica que ela tenha geralmente por fim e por resultado a escravização?
— Escravização momentânea para sovar os povos, a fim de fazê-los andar mais depressa.”
(Sovar=amassar, surrar, bater), existem várias traduções desta frase,
“Escravização temporária, para oprimir os povos, a fim de fazê-los progredir mais depressa” (trad. Guillon Ribeiro) “Sovar os povos” também foi traduzido por “esmagar os povos.

Diego Moraes (6) toca nos pontos nevrálgicos dessa questão ao indagar:
“A Providência não teria outros meios para atingir seus objetivos e precisaria promover a guerra? Não seria preferível gastar mais tempo para alcançar o progresso?”

Ainda que admitamos, que os povos derrotados na guerra, que foram oprimidos e escravizados, estivessem “progredindo” mais depressa, o que acontece com os vencedores? Também estariam progredindo moralmente mais depressa? Matar, oprimir e escravizar os outros povos não só acelera nossa evolução como atende aos planos da Providência? Não estaríamos com esse tipo de raciocínio reproduzindo a ideia da “Guerra Justa ou Santa”.

Essa resposta não estaria simplesmente justificando as matanças, os crimes contra a Humanidade, como na 1ª e 2ª Guerras? Não estaria justificando inclusive o Holocausto?”

O mesmo tipo de raciocínio podemos encontrar na 584, quando Kardec pergunta:
584- Qual pode ser a natureza da missão do conquistador, que só tem em vista satisfazer a sua ambição e para atingir o alvo não recua diante de nenhuma calamidade?

— Ele não é, na maioria das vezes, mais do que um instrumento de que Deus se serve para o cumprimento de seus desígnios. Essas calamidades são, muitas vezes, o meio de fazer avançar mais rapidamente um povo.

Podemos aceitar a interpretação que enxerga os “conquistadores” que promovem verdadeiras calamidades humanas, como o genocídio ou os crimes contra a Humanidade, como “instrumentos de Deus no cumprimento de seusdesígnios, para avançar mais rapidamente um povo”?

A Humanidade pode até tirar importantes lições das guerras e das calamidades humanas decorridas das guerras, mas daí acreditar que a Providência Divina a torne necessária ou venha a promovê-la, no velho estilo “os fins justificam os meios”, soa no mínimo muito estranho. Que Deus seria esse que se utilizaria de tanto horror apenas para que a Humanidade progredisse mais depressa?

Enquanto Kardec escrevia sua obra, a França do ditador Napoleão III, iniciava sua expansão imperialista conquistando a Indochina (Vietnã) e o Senegal em 1864. Realizava a segunda Guerra do Ópio (1860), junto com a Inglaterra, para dominar o comércio da China. Invadia o México derrubando o presidente Benito Juárez e colocando o imperador Maximiliano no poder (1862 a 1866).
A abordagem sobre a guerra no Livro dos Espíritos se confunde com o discurso de políticos e empresários na defesa do imperialismo na época, num claro alinhamento ideológico. Podemos identificar tal sintonia, por exemplo, no editorial do jornal Edimburgh Review de 1885, citado por Laima Mesgravis (10):
“O que nos empurra ao Egito e a França ao Marrocos não é a cobiça de domínio e desejo de adquirir novas possessões quanto o sentimento de que nós podemos instaurar ordem onde existe caos, fertilidade onde existe esterilidade. […] Não somos vorazes grileiros, mas os apóstolos do progresso, os missionários da civilização ocidental.”

Segundo o discurso imperialista, as guerras de conquista colonial e exploração dos outros povos seria uma espécie de “dever moral”, pois o europeu estaria acelerando o desenvolvimento da humanidade como um todo e levando o “progresso” e a “moderna civilização” para os povos “atrasados e selvagens”.

Segundo o Livro dos Espíritos, o conquistador europeu, ao “escravizar temporariamente” ou “sovar os povos”, seria um missionário ou “um instrumento de Deus no cumprimento dos seus desígnios”.

Rodolfo Jacarandá (11) nos lembra também, o quanto a moderna noção de progresso não está dissociada de suas origens políticas e históricas e foi amplamente usada para justificar o massacre de indígenas, o aperfeiçoamento de novas formas de escravidão e as guerras de expansão e conquistas imperialistas, cujas consequências geram conflitos em todo mundo até hoje.

Para encerrar a reflexão, vale ainda um pequeno comentário da questão 745:
– Que pensar daquele que suscita a guerra em seu proveito?

— Esse é o verdadeiro culpado e necessitará de muitas existências para expiar todos os assassínios de que foi causa, porque responderá por cada homem cuja morte tenha causado para satisfazer a sua ambição.

O homem não pode usar a guerra em proveito próprio. Fazer a guerra na defesa de seus interesses seria incorrer em grande culpa. Porém, se for para proveito dos planos da Providência, como a questão 744 aponta, estaria autorizado a matar sem culpa? Deus se opõe apenas aos que fazem guerras em proveito próprio? Mas existe alguma guerra que não tenha sido motivada pelo interesse de seus promotores?

 

Concluindo

Esse é um capítulo muito importante das leis morais por discutir a violência e propor a sua superação como solução de conflitos, condenando, por exemplo, a prática do duelo.

Também assume relevância a interpretação dos flagelos destruidores, por contrariar a visão dominante do movimento espírita brasileiro, que costuma atribuir os flagelos destruidores à expiação e ao resgate de débitos passados, dentro de uma leitura mecânica e simplista da lei de causa e efeito, que muito se aproxima da pena de talião.

Ao manifestar a mentalidade do providencialismo católico e do eurocentrismo imperialista de seu tempo, esse capítulo necessita de uma especial contextualização, buscando ampliar nossa compreensão do fenômeno da violência com as novas luzes trazidas pela filosofia e pelas ciências humanas contemporâneas.

A banalização da violência e o desprezo à vida tem assumido tamanha naturalidade nas relações sociais e internacionais, que se faz necessário problematizar essas questões, chamando atenção para os riscos de sua legitimação.

Como bem conclue Isabelle Delpla:
“Toda possibilidade de compreensão de um fenômeno social, como a guerra, retira-lhe uma parte do seu mistério e permite pelo menos escapar um pouco de sua influência. Estudar a guerra, não é ceder a um fascínio mortífero por esse mal e encontrar desculpas para sua violência; é manifestar a capacidade de atacar as ilusões das quais, em maior ou menor escala, ainda costumamos nos alimentar.”

OBS: Este texto é uma síntese das principais referências citadas a partir do entendimento de Flávio C. Bello com o intuito de subsidiar a conversação sobre as Leis Morais, no grupo de estudos do Livro dos Espíritos, realizado no CCEPA.

Referências:
1) Contextualizando Kardec, Do século XIX ao século XXI – Elias Inácio Morais, Ed. AEPHUS
2) Leis Morais e Saúde mental – Sérgio Luis da Silva Lopes, Ed. FEB
3) As Leis Divinas – José Lázaro Boberg, Ed. Fergs
4) Vídeo da AEPHUS: – Os flagelos destruidores e a Lei da Destruição: com Elias Moraes
5) Desencarne coletivo & Lei de destruição, Wladisney Lopes
6) Vídeo da AEPHUS: – A Lei da Destruição e a guerra: com Diego Moraes
7) Os Homens que amam a Guerra, Marcelo Jasmin
8) A ética da obediência, Frédéric Gros
9) Violência sem paixão, Isabelle Delpla
10) A Colonização da África e da Ásia, Laima Mesgravis, Ed. Atual
11) Vida Morte Vida – Rodolfo Jacarandá, Ed. Lachatre
12) As guerras podem ser justas? Costas Douzinas
13) A “Guerra Justa” São Tomás de Aquino e Outros Pensadores Cristãos
14) O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, tradução de J. Herculano Pires
15) Vídeo – A Lei da Destruição, de André Trigueiro

Enfoque

Reforma Íntima ou Autotransformação?

O homem no mundo é, portanto, um espírito em evolução…
Está ‘agora’ e ‘aqui’ para desenvolver-se. É a lei.”

Herculano Pires.

Ao estudante atento do Espiritismo evidencia-se que esta Doutrina Filosófica pede seguidores capazes de mudar, de conviver com a dúvida e com o questionamento permanentes, com a crítica consistente e, não raro, com o medo do novo e com a angústia do abandono do já estruturado e confortável. Evolução supõe mudança e isso pode ser, para muitos, bastante traumático, pois envolve incerteza, desequilíbrio momentâneo, desacomodação, abandono de crenças, ideias e sentimentos, ou seja, implica reconhecer o funcionamento do próprio ego e de suas enraizadas formas de atuação, geralmente infelicitadoras.

No entanto, sabemos, sem este processo, às vezes dolorido, que não seremos capazes de novas descobertas, de vislumbrar novos e melhores caminhos e, o mais importante, criarmos inéditos entendimentos viabilizadores de um ser em transmutação. Se evoluir envolve, às vezes dor, esforços e disciplina, o seu resultado é sempre momentâneo, porque progressivo em si mesmo, é libertador porque é potente para ampliar a felicidade e o bem-estar que vamos construindo. Por tudo isso, a mudança para melhor precisa ser um processo intencional, reflexivo e deliberadamente executado, para além, muito além de motivações religiosas por “temor de Deus” ou mesmo de castigos e recompensas na vida futura.

Evoluir é, assim, realizar conscientemente pequenas mortes e nascimentos de nós mesmos, de nossas formas de ser e estar no mundo, vivenciando então um ciclo permanente de compreensão de que a vida humana é permanente, numa natureza pessoal, impermanente, porque sempre mutante, nunca pronta, nunca suficiente, mas equipada pelo Criador com tudo que necessitamos para, com autonomia reflexiva, trilhar o rumo da jornada em direção à conquista progressiva de maior perfectibilidade e consequente felicidade, no cenário educativo das lições e experiências vividas em sociedade, mas como únicos responsáveis pela realização do evoluir.

Na realização de expansão de consciência que busca mudar, é necessário ver-se como alguém em processo de vir a ser, inserido no amplo processo evolutivo comum a todos, ultrapassando os limites do próprio saber, superando a si mesmo e o estágio de desenvolvimento em que se encontra. Isso envolve uma atividade abrangente de toda a nossa totalidade como seres humanos: estruturas mentais psíquicas, condutas psicoemocionais, acervo de conhecimentos, crenças, padrões comportamentais, hábitos, espiritualidade em construção etc. Deste modo, o progresso humano no que tange ao pensamento espírita é, sem dúvida, um processo de aprendizagem, como refere Jaci Regis. Trata-se de uma tomada de consciência de realidades pessoais, oportunidades, possibilidades e responsabilidades intransferíveis de cada ser humano, diante do presente que é a vida, da própria liberdade e da condição hominal de imortalidade e de transcendência.

A metodologia para vivenciar essa aprendizagem é, sem dúvida, o desenvolvimento de potenciais positivos e nobres e o alcance crescente de sua maturação e expansão, na prática existencial terrena.

Atualmente, duas ideias, a meu ver antagônicas, circulam no meio espírita como estratégias evolutivas: A chamada Reforma Íntima e a Autotransformação. Visualizemos esse antagonismo no quadro a seguir.

Reforma Íntima

Autotransformação

Ênfase nos erros, que exigem reforma.

Ênfase nos potenciais positivos que pedem desenvolvimento

Erro encarado como ofensa a Deus.

Erro – um caminho natural de aprendizado e consequência possível do livre-arbítrio.

Ação isolada, imediatista, pontual em correções íntimas.

Ação gradativa, processo constante e abrangente, envolvendo o contexto individual, agindo no ambiente.

Centrada em partes do indivíduo a serem reformadas.

Centrada no ser humano integral: nas dimensões bio-sócio-psíco e espiritual; da prática e da expansão da consciência.

É um compromisso individual, um ato solitário e isolado.

É um compromisso individual no e para o coletivo, um ato reciprocamente solidário, partilhado.

Dimensão espiritual individualista, envolvendo o contexto íntimo do ser.

Dimensão espiritual social, ocorrendo no contexto das experiências, no convívio social.

É uma relação vertical: homem-Deus, conexão individualista e muitas vezes mística em sua expressão – promessas, mortificações etc.

É uma relação horizontal: Deus no semelhante a ser respeitado e amado fraternalmente, sempre racional e conectada com a própria prática.

Espiritualidade da condenação por erros e culpas, voltada à Reforma Íntima.

Espiritualidade da compreensão das limitações do Eu e da sua libertação pelo desenvolvimento dos potenciais positivos humanos e pela expansão da consciência.

Motivada pelo temor a Deus, pelo medo de castigos ou pela busca de recompensas na vida espiritual, entendida como “salvação e graça divina”.

Motivada pela crença em si mesmo, potencialmente perfectível e construtora da própria felicidade e progresso, a partir das lições da experiência vivida em cada encarnação, entendida como autotransformação, dentro do processo evolutivo essencialmente autoral.

Assim, a autotransformação, envolvendo o ser humano em sua totalidade e complexidade sócio-biopsíquica e espiritual, é a alma do progresso no aqui/agora e, a longo prazo, o esteio do processo evolutivo do ser.

Herculano Pires apresenta-nos a falácia da Reforma Íntima, quando nos diz que: “…o espírito é vida e não arranjo; em sua natureza o espírito é igual em todos, não se estraga e só depende de desenvolvimento na experiência em estudos, em reflexões, com a mente aberta para a realidade e não fechada em esquemas artificiais…” Finaliza seus argumentos afirmando que: “O despertar da consciência na experiência é seu único caminho de progresso”. Concordo inteiramente com Herculano Pires, acrescentando que uma boa dose de humildade, mas na mesma medida, de fé em si mesmo e no próprio poder de autotransformação são, igualmente, necessários ao progresso individual. Importante é, também, crer-nos capazes de transformarmo-nos, guardando nossa essência, sem perdermo-nos em autocondenações ou autodesestruturações, agindo com equilíbrio e leveza, sabendo conviver com as dificuldades e frustrações. Assim fazendo, colheremos as satisfações interiores que só as vitórias pessoais sobre nós mesmos nos possibilitam, pois criam saúde, bem-estar e utilidade no contexto existencial terreno.

É um consolo e um alento perceber a Filosofia Espírita como se apresenta: pedagógica, emancipadora, propositiva, libertadora e que não nos exige perfeição momentânea, pois a coloca como uma meta humana, inserida em um processo de autotransformação, que ela respeita, ilumina e sustenta. Será sempre, então, a soma de possíveis e decididos passos de autotransformação, o que tornará real e factível cumprir um caminho de progresso pessoal, servindo-nos da solidariedade da vida em comum, nossa mestra permanente no reconhecimento de nossas necessidades, pois, no coletivo, o olhar do outro sobre nós lança luzes sobre o autoconhecimento, legitimando e confirmando prioridades momentâneas de autotransformação. É assim que há solidariedade permanente e generosa, além de útil fraternidade entre os seres humanos encarnados e desencarnados, contribuindo cada qual a seu modo e possibilidades, na conquista evolutiva individual, mas jamais solitária, porque se alimenta da riqueza contributiva dos irmãos de caminhada.

Autotransformar-se é um ato saudável de amor a si mesmo e ao semelhante porque, na medida em que desenvolvemos nossos potenciais positivos, vamos, também, partilhando uma nova maneira de ser e de agir na sociedade, plena dos valores que o mundo de hoje requer: solidariedade, igualdade, justiça social, integridade e ética, entre tantos outros. Autotransformação solicita-nos que construamos um relacionamento crescentemente ético conosco mesmos, com todos os semelhantes, em todas as situações e circunstâncias da vida. Isso possibilita-nos criar equilíbrio e harmonia interior, indicadores de saúde integral em nós mesmos. Autotransformação é, por tudo isso, a possibilitadora de acessarmos o caminho da conexão com o “Divino” que tanto buscamos.

O autotransformar-se vai sendo conquistado no enfrentamento e análise ética entre a vivência de nossa liberdade e o reconhecimento de individuais necessidades evolutivas. Nesta aparente contradição, vamos desenvolvendo potenciais positivos e construindo nossa identidade espiritual com base nos princípios altruístas da Filosofia Espírita. Autotransformar-se, uma maravilhosa possibilidade de escolha!

Referências Bibliográficas

– O Espírito e o Tempo – Introdução Histórica ao Espiritismo. José Herculano Pires. Editora Pensamento.
– Caderno Cultural Espírita – A Influência do Espiritismo na Evolução do Homem Contemporâneo. Ciro Pirondi.
– Novo Pensar: Deus, Homem e Mundo. Jaci Regis. Editora ICKS.

Enfoque

Sobre o suicídio

Recentemente o assunto do suicídio esteve bem presente para nós: o setembro amarelo, promovendo a prevenção, a notícia da morte assistida do escritor Antônio Cícero e, por último, o filme “O quarto ao lado”, com o tema da eutanásia. Em três países, três atitudes diferentes frente ao mesmo fato: a prevenção, a legalização e a penalização (seja de quem assiste o suicida, seja de quem quer que tenha conhecimento prévio e não denuncia a intenção).

O suicídio é uma ocorrência complexa, influenciada por fatores psicológicos, biológicos, sociais e culturais. A interrupção da vida pelas próprias mãos, desde a decisão até a execução, sempre foi um fato traumático para a nossa sociedade, eminentemente votada à preservação daquilo que é o seu valor mais alto – a vida – levando tantos cérebros a tratar do tema no campo de suas especialidades. O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), divergindo da ideia, comum na sua época, de que o suicídio é um ato dependente de fatores individuais, cabendo seu estudo exclusivamente à psicologia, desenvolveu a teoria1 de que esse fenômeno resulta de fatores de origem social, que poderiam influenciar indivíduos a procurarem a própria morte.

Durkheim classificou o suicídio em três categorias, a partir da forma como a sociedade (entenda-se: família, comunidade, profissão, religião, grupo político etc.) age sobre o indivíduo.

  • Suicídio egoísta – Comete-o o indivíduo que depende menos do grupo e mais de si próprio; ele se move para além do foco social coletivo, suas ações são determinadas por um individualismo excessivo. A predisposição ao suicídio surge quando o projeto individual, inerentemente frágil e não integrado num sistema social, se desintegra.
  • Suicídio altruísta – Ocorre quando há um excesso de integração ao grupo (social, familiar etc.), onde o indivíduo sente-se não só no direito de se suicidar, mas no dever de fazê-lo. Ao contrário do anterior, o suicida está convicto de uma causa superior à sua individualidade.
  • Suicídio anômico – Considerando-se que a ação individual e a regulação social são complementares, esse tipo de suicídio ocorre nos estados de anomia, quando a regulação cai e se perde a relação entre o indivíduo e a sociedade, como por ocasião de crises econômicas, ou quando ele se encontra em isolamento geográfico, alienação cultural etc., ou em contextos mais restritos, como nos casos de anomia conjugal ou familiar.

A teoria de Durkheim sofreu críticas por relacionar o suicídio exclusivamente a origens sociais, desprezando reais causas pessoais, como doenças mentais, por exemplo. Não obstante as críticas, podemos nos servir de sua classificação para avaliar as diversas situações que viveram os espíritos que, suicidas desencarnados, foram entrevistados por Kardec, conforme ficou registrado no livro O céu e o inferno, em sua 2ª parte, capítulo V – Suicidas (cuja leitura recomendamos). Pela narrativa de cada um, pode-se estabelecer os níveis de consciência, culpa e responsabilidade que guiaram seu ato e incluí-lo em uma das categorias.

Da leitura, constata-se que os espíritos de suicidas vivem, na erraticidade, aflições e sofrimentos não diferentes das de outros espíritos desencarnados devido a outras causas. O que há de semelhança entre uns e outros é o apego à vida material, que muitas vezes os faz permanecerem junto ao próprio corpo, sofrendo sua decomposição, como se ainda encarnados. Para os suicidas, porém, avulta o sofrimento moral: a decepção de ver continuado o sofrimento a que pretendiam dar fim, a culpa de terem infringido voluntariamente a lei de Deus e a dúvida angustiante de quando – e se – esse sofrimento terá termo. Por outro lado, nota-se que esse sentimento é aplacado quando o suicídio foi altruísta, isto é, causado na intenção de proteger alguém, preservar uma vida, ou na defesa de uma causa social imperativa – e na íntima convicção que essa intenção serviria como atenuante ao ato.

Finalmente, voltando aos eventos citados no início, o que dizer dos casos de eutanásia e morte assistida? É, sem dúvida, o específico uso do livre-arbítrio que uma pessoa faz ao deliberar, com pleno domínio da razão, negar-se ao avanço da demência ou de uma doença incurável, reservando-se uma “morte digna” e preservando as pessoas que lhe são mais próximas do longo e penoso acompanhamento até o fim natural. Ao olhar materialista, é uma atitude coerente, até louvável, na medida em que não lhe é dado distinguir qualquer sentido em continuar vivendo. Porém, quando se entende a morte como um marco na evolução do espírito, tal sofrimento surge como a última prova a ser enfrentada antes da libertação final. (Um dos espíritos entrevistados por Kardec lamentou-se: “Por que querer acabar com a vida quando já estava tão próximo do fim?”)

Ao contemplar, através do sofrimento, o benefício da eutanásia, cabe lembrar a exortação de Viktor Frankl2: “… sempre cada um dos instantes de que a vida é feita está morrendo, e aquele instante nunca mais voltará. Mas porventura não é essa transitoriedade algo que nos estimula e desafia a fazer o melhor possível de cada momento de nossas vidas? Certamente sim, e daí surge meu imperativo: “Viva como se você estivesse vivendo pela segunda vez e como se tivesse agido tão erradamente na primeira vez como está para agir agora. (…) Há uma abundância de possibilidades de dar sentido à existência.”
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(1) Quintaneiro, Barbosa e Oliveira – Um toque de clássicos – Durkheim, Marx e Weber. Ed UFMG, 1999, Belo Horizonte
(2) Frankl, V. E. – Em busca de sentido – Ed. Vozes, 50ª edição, 2020, São Leopoldo, RS

Enfoque

A revolução moral na humanidade. O Progresso moral individual. Dificuldades e possibilidades.

Modificar a sociedade ou modificar o indivíduo? Estamos nos referindo ao campo moral. À primeira vista, poder-se-ia dizer que o questionamento não teria muito sentido na medida em que, modificando-se o indivíduo, a transformação da sociedade seria consequência lógica e necessária. Mas parece que as coisas não são bem assim, diante da complexidade do estágio atual da humanidade. Para que a modificação individual pudesse levar, como decorrência inevitável, à transformação da sociedade (ou das sociedades) como um todo, os fundamentos de uma mensagem de caráter universalista, que tivesse a pretensão de promover uma transformação moral da humanidade, teriam de ter uma tal profundidade e abrangência, um gigantesco e sedutor poder para incutir nas pessoas, individualmente consideradas, uma consciência capaz de derrubar as barreiras das diferenças entre os povos, dos atavismos em vários campos, como social, cultural, religioso, político, econômico, das nacionalidades etc. Não seria uma tarefa fácil. Para não dizer impossível.

O otimismo da propagação

Kardec, no seu entusiasmo e contagiante otimismo diante do sucesso do seu dedicado trabalho, circundado pelos Espíritos, teve a convicção de que o Espiritismo se alastraria de modo retumbante pelo mundo, cativando e convertendo os povos à nova filosofia espiritualista. A força da sua filosofia e dos novos conhecimentos revelados pelos Espíritos seria, tão logo passadas “duas ou três gerações” (L.E., 798, comentário), a verdade que iluminaria e transformaria o mundo, marcando o progresso moral da humanidade (L.E., 802). Na Revista Espírita de fevereiro de 1865, reafirma a perpetuidade do Espiritismo. Entretanto, as coisas não se seguiram como prognosticado por Kardec. Como se sabe, o Espiritismo não conseguiu ganhar o mundo de modo a arrebatar os povos em todas as partes do planeta, apesar de consistir num trabalho formulado pelo vigoroso e metódico esforço do professor Lionês, consistente num conjunto de conhecimentos embasados numa intensa investigação experimental, de metódica observação, com uma lúcida e profunda formulação filosófica, da qual decorrem princípios morais incontestáveis.

Os obstáculos à propagação no mundo

O Espiritismo, surgindo num contexto cultural europeu, em que a ciência já se fazia impor aos dogmatismos religiosos, embora a religião ainda exercendo bastante influência, logo fascinou a opinião pública e não sofreu revés do meio acadêmico, angariando respeito e credibilidade. Por isso cresceu rapidamente no entorno europeu, justificando a empolgação de Kardec. Mas o Espiritismo, ao trazer revelações acerca da realidade espiritual humana, lidava com coisas que já embasavam as religiões, crenças e mitologias vigentes, como Deus, alma, espírito, mundo espiritual, reencarnação, evolução moral, comunicabilidade com os mortos etc. Aliás, mesmo nos meios eruditos acadêmicos, a ideia da alma ou do espírito não era rechaçada. Talvez este aspecto tenha implicado uma indiferença nos lugares distantes de Paris, uma vez que não trazia, para sociedades humanas impregnadas por crenças, mitologias e religiões milenares, exatamente novidades, na medida em que praticamente em todo o mundo estava presente a ideia da alma ou espírito, da reencarnação, do mundo espiritual, da vida após a morte, da possibilidade de ouvir os espíritos etc. E para o mundo da filosofia tradicional, acadêmica, talvez a natureza filosófica do Espiritismo não tenha sido devidamente reconhecida porque se embasava em assuntos que diziam respeito à seara da crença no sobrenatural e da fé religiosa. Sobretudo, na medida em que o próprio Kardec, além de não ser tido como um filósofo, incorporou à sua obra elementos inegavelmente configuradores de um sentido religioso, como afirmar, por exemplo, que o Espiritismo seria a terceira revelação divina, sendo uma continuação do Cristianismo, o consolador prometido (ESE, Cap. I, 5,6 e 7; Cap. VI, 3 e 4). Na Revista Espírita de setembro de 1967, Kardec publica um artigo, já anunciando que este faria parte do futuro livro O Céu e o Inferno, em que desenvolve e fundamenta, com raciocínio lógico e cristalinamente inteligível, esta questão da terceira revelação divina e do consolador prometido.

A sobrevivência do Espiritismo

Contudo, embora não se confirmando a expectativa de Kardec, de que o Espiritismo seria “uma revolução completa nas ideias” para o mundo todo, revolução essa que se realizaria “antes que este século tenha passado” (RE, fevereiro de 1965, Da Perpetuidade do Espiritismo), o Espiritismo sobreviveu em alguns lugares, superando perseguições, tanto de governos quanto da Igreja, e o desinteresse mesmo da opinião pública. Consolidou-se no Brasil, pelas circunstâncias favoráveis já bem conhecidas. Em outros poucos países, encontram-se grupos espíritas valorosos, trabalhadores competentes, persistentes e dedicados ao estudo e à difusão do Espiritismo, mas sem conseguir impregnar a sociedade das ideias espíritas para a formação de um movimento espírita significativo, socialmente influente. Na verdade, mesmo aqui em nosso País, embora o Espiritismo reste bem estabelecido e identificado como uma instituição vigorante, atuante, somos vistos por grande parte da opinião pública como mais uma seita ou, na melhor das hipóteses, como mais uma religião, embora os espíritas gozem de bom conceito pelas atividades desenvolvidas no campo assistencial.

A transformação íntima

Entretanto, ainda que o Codificador confiasse numa avassaladora disseminação da sua doutrina em nível planetário para promover a transformação moral da humanidade (em O Espiritismo em Sua Mais Simples Expressão, resumo, 30, e em O Livro dos Espíritos, conclusão, V, 2º§), e a regeneração da humanidade pelo progresso moral (Revista Espírita de agosto de 1965), sua obra é permeada pela ideia mais incidente, que era a transformação individual do homem. Kardec e os espíritos asseveram, reiteradamente, ao longo do todos os seus escritos, a necessidade da transformação íntima do ser humano. E afirmam enfaticamente que a doutrina espírita, bem estudada e compreendida, transformará o homem, levando-o ao progresso moral, que é, afinal, a missão e o objetivo último deste conhecimento novo, por força da sua natureza filosófica e moral, alicerçada na realidade dos fatos estudados e elucidados pela ciência espírita. Em O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVII, 4, Kardec ressalta a formidável capacidade do conhecimento espírita e a autoridade da sua filosofia para a promoção da evolução moral do homem e da humanidade.

Como promover o progresso individual?

Pois bem, a esta altura cabe perquirir se o Espiritismo está obtendo êxito em levar o ser humano à almejada transformação íntima (a expressão “reforma íntima” é inapropriada, como assevera H. Pires no livro Curso Dinâmico de Espiritismo, cap. 4). Estamos estudando e buscando compreender bem o conhecimento espírita, sua filosofia e o seu conteúdo moral, como orientava o Codificador? Estamos, nós espíritas e nossas instituições, conseguindo transmitir com clareza e fidelidade o conhecimento construído por Kardec, complementado pela exuberante, rica e constantemente atualizada literatura superveniente? Lembrando que manter a fidelidade à construção básica do Espiritismo implica observar, sem nenhuma relutância, a recomendação do próprio Kardec, posta em A Gênese, cap. I, 55. Sim, pois se abraçarmos a tarefa de, através da propagação do ensino espírita, contribuir para a evolução interior, moral, do ser humano, como queria Kardec, temos de proporcionar às pessoas as condições adequadas para a assimilação e compreensão dos postulados filosóficos e morais espíritas. Obviamente, sem deixar de operar, no que couber, a devida atualização doutrinária ao contexto em que o mundo hoje se move, passados mais de cento e sessenta anos da realidade vivenciada na época em que iniciada a construção do Espiritismo. Atualização não se confunde com reforma, abolição, supressão etc. Herculano Pires, ferrenho defensor da “pureza doutrinária”, leciona, sabiamente, que “é claro que o Espiritismo não poderia estacionar, num mundo em que tudo evolui, tudo se transforma. Negar a evolução do Espiritismo seria negar a sua lei fundamental, que é exatamente a lei da evolução” (Kardec e a Evolução do Espiritismo, artigo publicado em http://estudando.Kardec.blogspot.com/2008/7/Kardec-e-evoluo-do-espiritismo.html

Claro que não somente receber o conhecimento espírita basta para deflagrar o processo de melhoramento íntimo. O progresso individual interior deve ter presente também, ao par da aquisição dos princípios doutrinários e dos ensinamentos dos Espíritos, a regra de ouro estabelecida em O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XVII,4, sobre como se reconhecer o verdadeiro espírita: pelo esforço que faz para melhorar-se. Em O Espiritismo em Sua Mais Simples Expressão, resumo, 36, Kardec já asseverava que o verdadeiro espírita é “aquele que aproveita o ensinamento dado pelos espíritos”. Aproveitar, neste caso, significa apreender, compreender bem, assimilar e viver de acordo com este conhecimento.

Alternativas adotadas no Brasil

1) Assumindo, no Brasil, a feição assistencialista, tanto na área social (de natureza material) quanto no atendimento espiritual (de natureza terapêutica, fraternal, consoladora), o Espiritismo presta relevantes serviços, auferindo com tal perfil, induvidosamente, reconhecimento e respeitabilidade perante a opinião pública. Contudo, estas atividades espíritas estariam contribuindo para a transformação íntima daquelas pessoas que buscam apenas a caridade do Espiritismo para suprir suas carências e necessidades materiais ou que chegam à casa espírita para satisfazer um desejo de receberem a proteção espiritual ou o alívio de alguma perturbação física ou psicológica? Será que as pessoas socorridas nestas circunstâncias desenvolveriam os quesitos delineados por Kardec para que se caracterizassem como verdadeiros espíritas, esforçando-se pela própria evolução moral? Não é o que a realidade prática tem demonstrado. Quem busca a caridade, na sua grande maioria, lotando auditórios, salões, salas e corredores de casas espíritas, satisfaz-se com a mera caridade recebida, sem se interessar ou se dedicar ao aprendizado doutrinário.

2) Sem dúvida, a transformação íntima propugnada por Kardec há de se dar pelo estudo e justa compreensão dos postulados espíritas. Entretanto, no que se refere à ministração do conhecimento espírita, temos atingido o objetivo de levar o ser humano à transformação moral, ao melhoramento individual? Não é tarefa fácil avaliar em que medida o ensino doutrinário oferecido pelas instituições espíritas alcançam, efetivamente, a finalidade de mudar as pessoas de forma tão intimamente profunda, conduzindo-as ao almejado progresso moral, impregnadas pelas verdades filosóficas e valores morais decorrentes do Espiritismo codificado e de toda a vasta e elucidativa cultura espírita construída pelos que se seguiram a Kardec até os nossos dias.

Sem precisar fazer terra arrasada, impõe-se registrar, para fins de reflexão e algum exame, aspectos que, a meu ver, podem comprometer o sucesso da empreitada essencial do ensino espírita.

Profetas e sacerdotes

Hoje em dia, como bem público e notório, criaram-se verdadeiras classes de “profetas” e “sacerdotes” espíritas, na medida em que pessoas assumem posturas com estas características nos púlpitos, em mesas e salas mediúnicas, nos centros onde se ministram terapêuticas espíritas, dando-se uma conotação mística, mágica, ocultista, milagreira ou sagrada ao discurso doutrinário e à atividade mediúnica, afrontando valores e princípios basilares do Espiritismo, que se fundamenta no estudo e interpretação dos fatos e fenômenos sob o crivo da racionalidade e da lógica, o que permitiu uma formulação filosófica e uma dedução de princípios morais, afastando qualquer vinculação com o sagrado, com o miraculoso, afirmando que todas as coisas de que se ocupava a ciência de observação espírita fazem parte do processo ordenado (ou seria desordenado?) da natureza. Tornando inútil todo o esforço que Kardec fez para exatamente dessacralizar o mundo extrafísico, a vida após a morte, a comunicação com os espíritos etc. Organizam-se grandes centros para atrair pessoas crentes ou sofredoras, prometendo-se-lhes prodígios e maravilhas chanceladas pela participação dos espíritos, com o rótulo do Espiritismo. Perpetuam-se, com tais práticas e comportamentos uma verdadeira deturpação da verdadeira casa espírita, que deveria ser um centro de estudos para enriquecimento da cultura espírita, mas acaba sendo mais um templo místico, onde as práticas nada têm a ver com o que o Espiritismo espera dos espíritas. A caridade, um dos princípios morais tão defendido pela doutrina espírita, obviamente deve ser praticada no âmbito espírita e em qualquer lugar por espíritas ou não espíritas. Mas seria condenável desvirtuamento do verdadeiro sentido da caridade usá-la para atingir fins espúrios. Sem embargo, o que desejo apontar aqui é que mesmo as práticas caridosas, honestas e necessárias, talvez não tenham o condão de despertar, nas pessoas atendidas, a disposição para uma transformação moral pelo esforço em estudar, absorver e compreender o conhecimento que o Espiritismo pode oferecer.

Exageros metodológicos

Mas existem, sim, casas espíritas onde se pratica, com esforço e entusiasmo, o ensino espírita. Mas a difusão da doutrina, a transmissão do conhecimento, podem acabar ofuscadas e até mesmo inviabilizadas por equívocos ou comportamentos personalistas. Na medida em que se assume uma atitude professoral, ditando a doutrina espírita como se numa sala de aula, despejando conteúdos, aplicando métodos pedagógicos como se se tratasse de uma educação escolar, até com critérios de aferição para passagem de ano, de níveis, com planilhas de produtividade etc., pode-se estar perdendo a oportunidade de fazer frutificar o trabalho. Passar o conhecimento espírita não é dar aula, erigir cátedra para doutrinar. Inexiste a figura do professor de espiritismo. Nem a do aluno espírita. Tampouco existe uma escola espírita. Mais uma vez recorrendo a Herculano Pires, este pensador nos ensina que “o Espiritismo é uma tomada de consciência” do indivíduo. E para atingir esta consciência da sua responsabilidade existencial e da própria transcendência, o homem não precisa de mestre, mas desperta na experiência; “No Espiritismo, não há rebanhos nem pastores”, asserção posta na mesma obra acima citada.

Aquela pessoa que se interessa em conhecer o Espiritismo não deve ser tratada como aluno, aprendiz etc., mas deve ser inserida, acolhida, no ambiente de estudos, levada a assimilar os princípios básicos, desenvolvendo-se diálogo franco, livre, participativo, sem a verticalidade professoral. Aos poucos, avançando e aprofundando o livre-pensar espírita, na medida do interesse e da compreensão. Como se sabe, é um trabalho para pequenos grupos, visto que a experiência tem demonstrado que a massificação do ensino doutrinário, para plateias dispostas a apenas escutar palestras empolgantes, ou para um imaginário e incerto público nos meios virtuais, despejando-se conteúdos doutrinários de maneira formal, delineados e limitados por roteiros e programas que não atraem, seja pela aridez, seja pela pouca relevância e muita extensão, não produz o efeito satisfatório, que é o de instigar a pessoa a aprofundar o estudo, a pensar como espírita.

Somente quando a pessoa bem entender os princípios doutrinários, como preconizado por Kardec, e este conhecimento servir-lhe de iluminação para a compreensão de si próprio, para a tomada de consciência do seu papel na vida e no mundo, teriam sido atingidos os fins do ensino espírita. Estudar, compreender e aceitar o conhecimento doutrinário conduz a pessoa a pensar como um verdadeiro espírita e agir como espírita diante dos fatos da vida à nossa volta. O aprendizado espírita teria fracassado se a pessoa, apesar de receber o conhecimento espírita, deixa de se comportar de acordo com a condição espírita no seu cotidiano, ao enfrentar os obstáculos, ao se deparar com os fatos e situações da vida, esquecendo-se ou não conseguindo aplicar, na vivência prática, na experiência, o que aprendeu no rico e humanizador repositório filosófico e moral do Espiritismo.

Mercadejar com o Espiritismo

Ultimamente, fala-se até em criação de faculdade espírita para a formação de bacharéis em espiritismo. Veem-se anúncios oferecendo cursos virtuais, mediante pagamento. A literatura espírita é rica e valiosa para a propagação e consolidação do pensamento espírita, mas já há algum tempo, e presentemente, paira uma sensação de que a temática espírita está sendo usada como meio de vida em alguns casos. Nada mais em desacordo com o sentido que emana da essência simples, objetiva e profundamente humana da filosofia espírita. Mercadejar a difusão da doutrina espírita, condicionar a entrega do ensino espírita a remuneração, fazer do Espiritismo uma profissão, é um erro que só poderá acarretar o descrédito e a aniquilação da obra de Kardec e de todos os verdadeiros pensadores e trabalhadores espíritas. É a deturpação de todo o conteúdo da obra e da sua finalidade de promover a iluminação para o progresso humano. Por certo, um tal empreendedorismo não contribuirá para a promoção da transformação íntima, nem individual, nem da humanidade. Não se nega a valência do emprego das tecnologias, dos recursos artificiais, comunicações virtuais, produção literária etc., em iniciativas legítimas e benfazejas, com a finalidade de difundir o Espiritismo. A conectividade mundial hoje é uma realidade e uma exigência até. Contudo, seu manejo deve ser sempre orientado pela ética e pelos fundamentos filosóficos profundos, mas expostos de maneira tão simples e acessíveis à compreensão, inconfundivelmente consolidados e vigentes na obra espírita, sob pena de em nada contribuir para a efetiva transformação moral do ser humano.

Ideologização da doutrina

Da mesma forma, não será transformando o Espiritismo numa arena para cizânias ideológicas político-partidárias, que a revolução individual ou social se realizará. O pensamento espírita, inspirado pela estrutura superior da doutrina que, desde o impulso inicial que moveu Kardec para esta sublime missão, prima pela investigação imparcial dos fatos e pela busca dos valores morais mais caros para a humanidade, estabelecendo, assim, um embasamento filosófico maravilhoso, universal, não pode ser desfigurado, esfacelado, por posturas fisiológicas, divisionistas, tendentes a identificar o Espiritismo com tais ou quais terrenos ideológicos, colocando-o em antagonismos políticos, lutas e disputas de poder, fazendo-se proselitismo para sustentar uma natureza partidária, parcial, facciosa que nunca se vislumbrou na doutrina kardequiana e que não deflui, nem de longe, da teoria espírita. Não se poderia, mesmo, extrair-se do conhecimento espírita tal configuração, sob pena de incorrer-se numa incongruência insuperável, na medida que todo o trabalho de Kardec e dos espíritos que o assistiram na grandiosa e extenuante empreitada teve o inequívoco propósito e a inspirada missão da busca de verdades universais para a iluminação da razão humana e, consequentemente, a promoção do progresso moral do homem e da humanidade.

Não se nega o direito de as pessoas, espíritas ou não, fazerem suas opções por tais ou quais ideologias, sistemas, regimes, matizes partidárias etc. no campo político. Contudo, usar o Espiritismo para sustentar convicções na seara político-partidária, reduzindo a filosofia espírita a mera protagonista de uma ideologia política em oposição a outras, é desnaturar a doutrina na sua essência apolítica. Embora o espírita, como cidadão, possa exercer a política ou agir politicamente tendo como inspiração e norma de proceder os princípios que auferiu do aprendizado espírita. Entretanto, a prevalecer a noção de que o Espiritismo pertence a esta ou àquela matriz ideológica em antagonismo às demais, restaria fulminada a pretensão do fundador da doutrina, que sempre preconizou que o Espiritismo se dirige a toda a humanidade e tem como missão a revolução humana no campo moral, sem excluir ou dividir as pessoas.

Ainda é possível?

Por fim, há que considerar que não só o adepto do Espiritismo evolui moralmente. O ser humano, com Espiritismo ou sem ele, pode experimentar o progresso moral individual, porque o homem é naturalmente bom, embora possa decair e sofrer influências do meio, que atrasem o progresso moral (Rousseau). O processo reencarnatório, a sucessividade das vidas no mundo material, o exercício do seu livre arbítrio, são instrumentos que tornam o ser humano o construtor do seu próprio destino. E, como se sabe, a lei natural aplica-se a toda a humanidade. O conhecimento espírita está aí para a sublime missão de tornar menos difícil e para, talvez, abreviar a caminhada rumo ao progresso, esclarecendo e iluminando o uso da razão para a mencionada tomada de consciência. Entretanto, não é a única via para a evolução moral. Mas ainda tem o Espiritismo a capacidade de viabilizar a transformação moral no homem? No contexto atual, diante do absurdo progresso tecnológico e intelectual, que se preocupam com o aqui e agora, o imediatismo e a massificação da informação e do conhecimento, que deixou de ser privilégio de poucas pessoas, mas se dissemina instantânea e globalmente, alcançando todos os recantos do mundo, o Espiritismo teria potencial para promover a propagação da sua filosofia no mundo, de modo a concretizar a tal revolução moral na humanidade? E mesmo no âmbito mais limitado em que atua, com abrangência territorial mais modesta do que aquela sonhada por Kardec, estaria o Espiritismo logrando êxito em contribuir para o aparecimento do “verdadeiro espírita”, promovendo o progresso (ou transformação) moral individual do homem?

Enfoque

A resistência ao Jesus histórico no meio espírita

A comunidade espírita brasileira construiu um discurso sobre a cientificidade do Espiritismo. Tomando a posição de Kardec como referência [1], os espíritos se declaram abertos aos avanços científicos, inclusive desfrutando de mudar certos pontos da Doutrina, desde que se comprovem estar errados. Não vou discutir o estatuto científico do Espiritismo. Neste texto, o objetivo é confrontar a apropriação desse discurso de valorização das ciências com os resultados das pesquisas históricas e arqueológicas sobre Jesus de Nazaré.

Embora a posição aparentemente flexível e progressiva, o que se observa é que os espíritos estabelecem uma relação seletiva com os saberes científicos. Se as teorias e os experimentos apontam alguma convergência com as teses do Espiritismo, geralmente são aceitas e replicadas sem um exame mais detido. Por outro lado, se as pesquisas científicas discordam dos conteúdos espíritas ou mostram que estão equivocados e/ou ultrapassados, a ocorrência é intensa na defesa do credo. A comunidade espírita tende a se isolar em sua bolha de fé e reforçar convicções para os convertidos.

Exemplo relevante dessa ambiguidade é o tratamento dispensado às descobertas sobre o Jesus histórico. A perturbação provocada é capaz de unir quase todo o espectro dos espíritas, de dogmáticos a progressistas. O desagrado é generalizado. Parece haver um acordo implícito de limites para essas pesquisas, pois é considerado exagero mexer em certas concepções sobre a figura deificada de Jesus. Curiosamente, nesse contexto, muitos espíritos praticam negacionismo científico. Cai por terra todo o discurso cuidadosamente elaborado e reproduzido de uma suposta conduta doutrinária de diálogo rigorosa e permanente com as ciências.

As opiniões no Jesus teológico são fortes e se impõem sobre as evidências históricas e arqueológicas. Essa resistência indica conflitos com a idealização do camponês de Nazaré e revela fragilidades na elaboração de certos conteúdos doutrinários. Por vezes, a apresentação das descobertas é recebida como opinião às opiniões pessoais. Por isso esclareço: não discuto a fé de ninguém. Respeito o direito das pessoas de acreditar no tipo de Jesus que mais lhes agrada. Estou ciente do sucesso do Cristo no meio espírita brasileiro. Não escrevo para atacar nem para converter. Faço uma análise e a entrego para as considerações do(a) leitor(a) interessado(a) no tema.

Objeções mais comuns

Uma ampla parcela dos espíritos se satisfaz com as abordagens exclusivamente teológicas. Para esse grupo, a historicidade de Jesus é negada ou nem sequer é alvo de atenção. Essas pessoas conhecem apenas o Jesus Teológico da Bíblia e os livros espirituais de exortação da moral evangélica; leem os romances mediúnicos e acredito piamente que são relatos verídicos e completos dos episódios dos Cristianismos primitivos. Para esses adeptos, o mais importante é ter fé em Cristo. Assim, ignoram, não se interessam ou rejeitam as pesquisas sobre o Jesus histórico. Sua visão é limitada à crença e sem contato com a ciência.

Na sequência, abordo meu registro das três contestações mais frequentes dos espíritas referentes às pesquisas de historiadores e arqueólogos sobre Jesus. Não pretendo estabelecer uma classificação completa e definitiva. Certamente há nuances que escapam ao esquema proposto, e a complexidade dos posicionamentos extrapola esta ordenação conceitual. No entanto, entendo que pode ser um mapa útil para apresentar um panorama dos principais argumentos da inclusão. Escrevo alguns apontamentos em cada tópico, examinando a teoria das ideias.

Assimilação fideísta

Esse agrupamento é formado por espíritas que aceitam alguns resultados das pesquisas sobre o Jesus histórico e tentam adaptá-los às suas crenças. Há uma tentativa de conciliar os conhecimentos científicos com as informações dadas pelos Espíritos. É um comportamento característico de adeptos com formação superior, particularmente em Ciência da Religião. Conceitos e descobertas são mobilizados para dar uma suposta validação científica ao conteúdo mediúnico. O exemplo mais notável é o esforço de harmonização das investigações documentais e arqueológicas com a narrativa do livro “Paulo e Estêvão”, apesar do acúmulo de divergências.

Mas nesse grupo, parte das investigações científicas são ignoradas de propósito; não é por falta de conhecimento. Faça-se uma opção pela visão teológica em confronto com a realidade histórica. A situação é bem ilustrada na insistência desses espíritos em afirmar que Jesus sabia ler e escrever, que era um leitor das escrituras sagradas. Essa crença é infundada e se opõe ao consenso científico consolidado: Jesus foi um camponês pobre e analfabeto. Os malabarismos exegéticos demonstram o desconforto em admitir uma liderança espiritual sem letramento.

Nessa mentalidade, há uma falsa aliança da fé com a ciência, uma encenação da proposta Kardequiana [2]. Mas na prática o que se observa são os espíritos colocando essa fé acima do exame racional. O que se faz é submeter a história aos ditados mediúnicos e, por isso, denomina essa postura de Escolástica Espírita. Trata-se de uma retomada medieval, agora atualizando a filosofia pela ciência. Os textos científicos são interpretados à luz do Espiritismo e parte-se do pressuposto da verdade das informações de origem espiritual. Portanto, é feita uma seleção conveniente de conteúdos históricos e destruídos, que são submetidos à fé espírita.

Viés materialista

As objeções desse grupo se concentram nas suposições metafísicas dos pesquisadores, pois muitos são céticos em relação às aparências espirituais e outros tantos são ateus. Ressalta-se que os métodos históricos têm limitações e, nesse contexto sobre a vida e os feitos de Jesus, de particular importância são os critérios do que se julga serem possíveis. Por exemplo, se os cientistas não admitirem a priori os acontecimentos relatados como milagres, logo deverão ser outras coisas e não fatos. O ceticismo e o ateísmo são apontados como causas de ciúme das pesquisas sobre o Jesus histórico, cujas conclusões estariam condicionadas a esses paradigmas.

Embora reconhecendo a validade dessa argumentação, precisamos examiná-la detalhadamente. Os modelos epistemológicos mais renomados sobre as pesquisas científicas confirmam que a visão do pesquisador é significativa e que deve ser considerada como parte integrante de seu trabalho. Mas esse aspecto é administrável com boas práticas de pesquisas históricas e arqueológicas, através de métodos rigorosos, teorias consistentes e pelo controle coletivo dos pares da comunidade de pesquisadores. Os resultados são embasados ​​em fontes documentais, escavações, análises comparadas de textos etc. As evidências são apresentadas em artigos científicos que passam pelo escrutínio dos demais especialistas.

A questão é mais complexa e não podemos negar os resultados das pesquisas apenas com a justificativa da interferência do embasamento metafísico dos pesquisadores. Além disso, o espírito não tem vindo a estudar sobre Jesus? A suposição espiritualista do Espiritismo também não poderia ser usada como motivo para interditar aos espíritos a investigação histórica? Se nos guiarmos por esse entendimento tão restritivo, teríamos de concordar com os céticos dos psicológicos e mediúnicos, que desde o século XIX acusam os espíritos de parcialidade na condução dessas pesquisas.

Correntes de pensamento

Por vezes a objeção recai sobre uma suposta falta de consenso no meio científico. Certos pontos são considerados como opiniões isoladas de pesquisadores, como por exemplo, a inexistência histórica de Judas Iscariotes e o não sepultamento do corpo de Jesus. São aspectos que tocam em discussão, e a exclusão deles é embasada na divergência de outros estudiosos. É argumentação típica de espíritas que são historiadores de profissão, embora não sejam especialistas em Cristianismos e Judaísmos primitivos. Muitas vezes é rotulado de modismo como pesquisas históricas de Jesus, como se fosse uma excentricidade passageira que criava tipos alternativos e customizados do nazareno.

Naturalmente, como em toda ciência, existem tópicos não consensuais em debate nas pesquisas sobre Jesus. Mas, geralmente, não são estes itens que incomodam os espíritos, pelo contrário: são os aspectos consolidados que provocam as negações. É muito importante destacar que parte dessas alegadas divergências são de teólogos cristãos. O argumento do viés religioso deveria ser aplicado? Em muitos casos a discordância é apenas uma defesa de dogmas. Além disso, em todas as áreas científicas existem pessoas que não aderem aos consensos mesmo que há evidências robustas. Há biólogos antivacina, físicos negacionistas do aquecimento global etc. Esses sim são posições isoladas que não refletem o estado da arte de uma ciência.

As pesquisas sobre Jesus formam uma área científica consolidada, em franco desenvolvimento e remontam suas origens ao século XIX. Há uma rede mundial de historiadores e arqueólogos, grupos de pesquisa universitária, periódicos de publicação e debates. Fontes e métodos embasam essas ciências, que utilizam documentos, artefatos materiais, textos etc. Logo, não se trata de uma modinha acadêmica, mas de um trabalho interdisciplinar maduro. Os espíritos que pesquisam nesse ramo científico são muitas vezes acusados ​​de estarem tentando solapar o Espiritismo, são tratados como adversários internos.

E se Jesus não for o “cara”?

Essa é uma questão central para os espíritos. O Jesus histórico revelou pelas pesquisas científicas muitas e importantes diferenças com suas representações teológicas. O Espiritismo surgiu em uma cultura cristã e herdou séculos dessa construção religiosa. Kardec teve uma postura racional e ponderada ao lidar com o assunto, quando chegou ao conhecimento, ao analisar a obra de Ernest Renan. Kardec se esforçou para dialogar com as ciências de sua época (e suas limitações), e não se tornou um defensor de Jesus teológico. Apesar disso, a visão religiosa de Cristo é relevante em seu trabalho. Nesse sentido, é exemplar a querrela para associar o Espírito de Verdade a Jesus, que continua provocando debates atualmente. Essa discussão teológica foi iniciada pelo próprio Codificador a partir de mensagens mediúnicas que ele revelou essa informação. Essa busca mostra o comprometimento em dar autoridade ao pensamento espírita dentro de um contexto majoritariamente cristão.

A estratégia consiste em trazer ao Cristo em pessoa (espírito) a condução da elaboração do Espiritismo. Mas esse líder tem que ser uma criatura excepcional da visão teológica. Ocorre que a ciência mostra como foi a construção paulatina dessa figura ímpar e os interesses e conflitos que mobilizaram tal estruturação. Daí, portanto, surgirem os choques provocados pelas descobertas do Jesus histórico. Alguns aspectos do pensamento espírita são calcados em informações equivocadas ou exageradas sobre o nazareno. O que acontece se esvaziarmos Jesus dessa potência salvífica? Se as suas características extraordinárias foram atribuídas a segundas disputas religiosas, é preciso enfrentar uma ruptura no sagrado, um conflito de fé.

Por isso, estou confirmado de que por um longo tempo o Jesus histórico ficou quase limitado ao meio acadêmico (e entre os curiosos), sem penetrar no meio espírita, que ele é refratário. Jesus de Nazaré era um camponês inteligente que falava coisas sábias. Mas esse não é o motivo de seu sucesso popular. Não foi esse o “cara” que dividiu o calendário em antes e depois dele. A relevância em se falar de Jesus (desde o século I) se deve ao fato de ele curar, exorcizar e fazer milagres. Ele é capaz de controlar a água e os ventos, trazendo paz e segurança, libertando o indivíduo do medo. Esse Jesus exaltado e reverenciado é que faz sentido para muitas pessoas. Esse é o lado que explica o seu sucesso, embora tenha um pouco a ver com a história.

Isso se refere à dimensão teológica de um Jesus fortemente idolatrado que, inclusive, vai gradativamente se tornar Deus ao longo do processo histórico. Ele se transformou em uma potência a quem os cristãos recorrem para lhes salvar e ajudar. Os cristãos tradicionais fizeram o Nazareno chegar ao topo através de profundas interações culturais nas quais Jesus absorveu muitas potências dos deuses da concorrência religiosa. Os espíritos prosseguem à expansão teológica de Jesus, colocando-o no patamar superior a todos os Espíritos, conferindo-lhe o título de governador espiritual do planeta. Embora o Espiritismo reconheça a existência de missões em todas as culturas, Jesus é melhor do que eles, evoluíram em linha reta.

O maravilhoso e o sobrenatural

A religião não é algo estático. Os movimentos de Jesus sem Jesus (re)configuram dinamicamente o retrato do camponês de Nazaré. Há estilos para todos os gostos: Jesus profeta do fim do mundo, Jesus (quase) guerrilheiro, Jesus filósofo, Jesus esotérico etc. Alguns confrades manifestam preocupação de que logo vamos ter um “Jesus espírito progressista”, que será um avatar de discussões sobre representatividade étnico-racial e libertação anticolonial, apresentações apenas para a vida terrena. Não partilho desse recebimento. Com o expressivo avanço neopentecostal e do fundamentalismo religioso cristão no Brasil, o Jesus teológico assume uma visão reacionária, armamentista e focada na prosperidade econômica.

O movimento espírita hegemônico, federativo e institucionalizado, responde a esse cenário aprofundando seu típico conservadorismo. Está em curso a ascensão de um Espiritismo que supervaloriza o texto bíblico em detrimento das pesquisas históricas e arqueológicas e do próprio conteúdo espírita. Popularizam-se os grupos de “estudo minucioso” do evangelho, impulsionados pelos órgãos de unificação, sem qualquer suporte dos saberes científicos. O Jesus teológico é reforçado, embora se adaptando ao novo contexto de predomínio religioso dos evangélicos. Já temos até uma “Bíblia espírita” e “especialistas” das escrituras sagradas. Trata-se da continuação do Espiritismo catolicizado que dominou o século XX. Em ambas as situações, o Jesus teológico é fundamental para a estrutura do credo.

Essa mentalidade tem origem no século XIX, quando as teses de Roustaing desembarcaram no Brasil. Suas concepções teológicas sobre Jesus enraizaram-se profundamente nos Espiritismos do país, principalmente por causa de sua intensa divulgação pela Federação Espírita Brasileira. Nessa perspectiva, Jesus não teve um corpo carnal, mas apenas o fluídico, dentre outros absurdos. Embora em franca contradição com a lógica, as ciências, os fatos e os princípios espirituais, sua obra caiu no gosto popular marcadamente devocional. Percebe-se essa poderosa influência do Roustainguismo no senso comum espírita, que interpreta de maneira literal as narrativas de curas e milagres atribuídos a Jesus. Kardec foi cauteloso ao examinar esse tópico e propor explicações espirituais.

Asclépio — deus da medicina e da cura na mitologia grega — curava e ressuscitava (também doentes em fase terminal). É uma realização anterior a Jesus, famoso no império romano. Não adianta hoje dizer isso pois, para o espírito crente na perspectiva teológica, Jesus Cristo o superou. Nessa chave cristã de leitura do Espiritismo, o guia e modelo moral da humanidade precisa ser dotado de habilidades sobre-humanas. Atribuir-lhe superpoderes é uma forma de credenciá-lo ao papel máximo de líder espiritual. Portanto, quando uma pesquisa científica aborda o homem Jesus, historicizado, e explica o seu processo multissecular de deificação, a fé de muitos espíritos pode ficar abalada.

Por uma nova transcendência

As pesquisas do Jesus histórico geram dúvidas pertinentes sobre a veracidade das informações mediúnicas sobre ele e os cristãos. É preciso examinar com rigor os livros psicografados que versam sobre esse tema e ter a honestidade intelectual de rejeitar aquilo que estiver errado. É compreensível o incômodo que isso causa no meio espiritual, pois essas obras foram (e ainda são) fundamentais para construir, divulgar e fortalecer o imaginário teológico. Aceitar os resultados científicos implica abandonar a visão mística do Nazareno, o que muitas pessoas não querem fazer. Reitero o meu respeito ao direito do espírito de crer nesse Jesus romanceado e nas invenções espirituais sobre ele, mas é preciso enfatizar que tal crença não tem embasamento histórico nem arqueológico.

Nós somos criados no caldo cultural dominado pelos cristãos e pelas suas teologias de Jesus. O meio espírita brasileiro faz parte dessa educação social, em particular através dos conteúdos mediúnicos fantasiosos. Vivemos muitos anos imersos nessas áreas e é difícil encarar as críticas que apontam seus limites e historicidade. Nessa mente, aprender a reverenciar Jesus como um ser especial, dotado de poderes específicos, sem as fragilidades humanas. Há companheiros que alertaram para a provável formação de um Jesus sem transcendência, “apenas” humano. Observe que a perda do status divino causa insegurança e mal estar.

Penso que nosso amadurecimento na relação com Jesus e sua mensagem passa mesmo por essa humanização dele. Não em um sentido depreciativo, negando-lhe virtudes. Mas, paradoxalmente, (re)formulando sua transcendência. O comportamento dele é profundamente humano porque é ético e amoroso. Jesus foi um judeu, camponês analfabeto, que propôs o reino de Deus na Terra, baseado em três princípios: comensalidade, justiça e paz. A prática do amor ao próximo é o núcleo de sua moral. Se Jesus fosse um ser transcendente, diferenciado no sentido teológico, ele possuiria uma natureza diversa da nossa. Logo, tudo o que ele ensinou não nos serviria, pois só seria viável de aplicação para os que fossem semelhantes.

As deturpações teológicas e mediúnicas da figura de Jesus infantilizam cristãos e espíritas, que o tratam como um sujeito excepcional. Daí advêm aberrações e sofismas para justificar que ele seja simultaneamente humano e divino. Há espíritos que admitem a virgindade de Maria e a tese de que Jesus morreu na cruz para nos salvar dos pecados. Essas são algumas consequências de concebê-lo com essa transcendência religiosa. No entanto, o Espiritismo explica que a natureza dele é idêntica à nossa. Essencialmente somos iguais e nossa diferença em relação a ele não é de natureza, mas sim de nível de desenvolvimento espiritual. As pesquisas históricas enfatizam a convivialidade de Jesus, sempre no meio das pessoas, participando de suas vidas, envolvidas com as grandes questões de sua época-lugar.

Eu estou convencido de que no diálogo com o Jesus histórico podemos aprofundar nossa compreensão sobre ele e seus ensinamentos e abrir mão das versões teológicas construídas para atender aos interesses do domínio religioso. Essa abertura crítica para o conhecimento científico sobre Jesus apresenta novas perspectivas de interpretação até de sua moral e nos imuniza contra fanatismos, fundamentalismos e dogmas. Além disso, os avanços das pesquisas em nada afetaram o núcleo do Espiritismo, que é: a existência da alma e sua sobrevivência à morte do corpo biológico, conservando integralmente a sua individualidade. Estudar Jesus com os métodos e teorias da história e da arqueologia pode ser de grande utilidade na reformulação de sua transcendência, deslocando-a dos aspectos místicos e devocionais para os aspectos éticos e sociais. Isto é, trocar a ênfase dada para curas, milagres, exorcismos etc, pelo sujeito profundamente amoroso e comprometido com a felicidade do próximo, com a garantia do necessário para uma vida digna e com o exercício das virtudes. Enfim, transitar para uma compreensão historicizada de Jesus é um convite para que uma pessoa espírita permita uma experiência liberta das carcomidas amarras das teologias.

[1] A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Capítulo I, item 55. Autor: Allan Kardec. Editora: IDE.

[2] O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo I, item 8. Autor: Allan Kardec. Editora: LAGO.

Agradecimentos a Priscilla Pellegrino pela revisão textual, a Diego Alberto pelos apontamentos relevantes, e ao pessoal do Instituto de Pesquisa Matéria, Espírito e Sociedade pela paciência nas controvérsias sobre o Jesus histórico no meio espiritual.

Artigo publicado em https://medium.com/@cultespirita

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