Reforma Íntima ou Autotransformação?

O homem no mundo é, portanto, um espírito em evolução…
Está ‘agora’ e ‘aqui’ para desenvolver-se. É a lei.”

Herculano Pires.

Ao estudante atento do Espiritismo evidencia-se que esta Doutrina Filosófica pede seguidores capazes de mudar, de conviver com a dúvida e com o questionamento permanentes, com a crítica consistente e, não raro, com o medo do novo e com a angústia do abandono do já estruturado e confortável. Evolução supõe mudança e isso pode ser, para muitos, bastante traumático, pois envolve incerteza, desequilíbrio momentâneo, desacomodação, abandono de crenças, ideias e sentimentos, ou seja, implica reconhecer o funcionamento do próprio ego e de suas enraizadas formas de atuação, geralmente infelicitadoras.

No entanto, sabemos, sem este processo, às vezes dolorido, que não seremos capazes de novas descobertas, de vislumbrar novos e melhores caminhos e, o mais importante, criarmos inéditos entendimentos viabilizadores de um ser em transmutação. Se evoluir envolve, às vezes dor, esforços e disciplina, o seu resultado é sempre momentâneo, porque progressivo em si mesmo, é libertador porque é potente para ampliar a felicidade e o bem-estar que vamos construindo. Por tudo isso, a mudança para melhor precisa ser um processo intencional, reflexivo e deliberadamente executado, para além, muito além de motivações religiosas por “temor de Deus” ou mesmo de castigos e recompensas na vida futura.

Evoluir é, assim, realizar conscientemente pequenas mortes e nascimentos de nós mesmos, de nossas formas de ser e estar no mundo, vivenciando então um ciclo permanente de compreensão de que a vida humana é permanente, numa natureza pessoal, impermanente, porque sempre mutante, nunca pronta, nunca suficiente, mas equipada pelo Criador com tudo que necessitamos para, com autonomia reflexiva, trilhar o rumo da jornada em direção à conquista progressiva de maior perfectibilidade e consequente felicidade, no cenário educativo das lições e experiências vividas em sociedade, mas como únicos responsáveis pela realização do evoluir.

Na realização de expansão de consciência que busca mudar, é necessário ver-se como alguém em processo de vir a ser, inserido no amplo processo evolutivo comum a todos, ultrapassando os limites do próprio saber, superando a si mesmo e o estágio de desenvolvimento em que se encontra. Isso envolve uma atividade abrangente de toda a nossa totalidade como seres humanos: estruturas mentais psíquicas, condutas psicoemocionais, acervo de conhecimentos, crenças, padrões comportamentais, hábitos, espiritualidade em construção etc. Deste modo, o progresso humano no que tange ao pensamento espírita é, sem dúvida, um processo de aprendizagem, como refere Jaci Regis. Trata-se de uma tomada de consciência de realidades pessoais, oportunidades, possibilidades e responsabilidades intransferíveis de cada ser humano, diante do presente que é a vida, da própria liberdade e da condição hominal de imortalidade e de transcendência.

A metodologia para vivenciar essa aprendizagem é, sem dúvida, o desenvolvimento de potenciais positivos e nobres e o alcance crescente de sua maturação e expansão, na prática existencial terrena.

Atualmente, duas ideias, a meu ver antagônicas, circulam no meio espírita como estratégias evolutivas: A chamada Reforma Íntima e a Autotransformação. Visualizemos esse antagonismo no quadro a seguir.

Reforma Íntima

Autotransformação

Ênfase nos erros, que exigem reforma.

Ênfase nos potenciais positivos que pedem desenvolvimento

Erro encarado como ofensa a Deus.

Erro – um caminho natural de aprendizado e consequência possível do livre-arbítrio.

Ação isolada, imediatista, pontual em correções íntimas.

Ação gradativa, processo constante e abrangente, envolvendo o contexto individual, agindo no ambiente.

Centrada em partes do indivíduo a serem reformadas.

Centrada no ser humano integral: nas dimensões bio-sócio-psíco e espiritual; da prática e da expansão da consciência.

É um compromisso individual, um ato solitário e isolado.

É um compromisso individual no e para o coletivo, um ato reciprocamente solidário, partilhado.

Dimensão espiritual individualista, envolvendo o contexto íntimo do ser.

Dimensão espiritual social, ocorrendo no contexto das experiências, no convívio social.

É uma relação vertical: homem-Deus, conexão individualista e muitas vezes mística em sua expressão – promessas, mortificações etc.

É uma relação horizontal: Deus no semelhante a ser respeitado e amado fraternalmente, sempre racional e conectada com a própria prática.

Espiritualidade da condenação por erros e culpas, voltada à Reforma Íntima.

Espiritualidade da compreensão das limitações do Eu e da sua libertação pelo desenvolvimento dos potenciais positivos humanos e pela expansão da consciência.

Motivada pelo temor a Deus, pelo medo de castigos ou pela busca de recompensas na vida espiritual, entendida como “salvação e graça divina”.

Motivada pela crença em si mesmo, potencialmente perfectível e construtora da própria felicidade e progresso, a partir das lições da experiência vivida em cada encarnação, entendida como autotransformação, dentro do processo evolutivo essencialmente autoral.

Assim, a autotransformação, envolvendo o ser humano em sua totalidade e complexidade sócio-biopsíquica e espiritual, é a alma do progresso no aqui/agora e, a longo prazo, o esteio do processo evolutivo do ser.

Herculano Pires apresenta-nos a falácia da Reforma Íntima, quando nos diz que: “…o espírito é vida e não arranjo; em sua natureza o espírito é igual em todos, não se estraga e só depende de desenvolvimento na experiência em estudos, em reflexões, com a mente aberta para a realidade e não fechada em esquemas artificiais…” Finaliza seus argumentos afirmando que: “O despertar da consciência na experiência é seu único caminho de progresso”. Concordo inteiramente com Herculano Pires, acrescentando que uma boa dose de humildade, mas na mesma medida, de fé em si mesmo e no próprio poder de autotransformação são, igualmente, necessários ao progresso individual. Importante é, também, crer-nos capazes de transformarmo-nos, guardando nossa essência, sem perdermo-nos em autocondenações ou autodesestruturações, agindo com equilíbrio e leveza, sabendo conviver com as dificuldades e frustrações. Assim fazendo, colheremos as satisfações interiores que só as vitórias pessoais sobre nós mesmos nos possibilitam, pois criam saúde, bem-estar e utilidade no contexto existencial terreno.

É um consolo e um alento perceber a Filosofia Espírita como se apresenta: pedagógica, emancipadora, propositiva, libertadora e que não nos exige perfeição momentânea, pois a coloca como uma meta humana, inserida em um processo de autotransformação, que ela respeita, ilumina e sustenta. Será sempre, então, a soma de possíveis e decididos passos de autotransformação, o que tornará real e factível cumprir um caminho de progresso pessoal, servindo-nos da solidariedade da vida em comum, nossa mestra permanente no reconhecimento de nossas necessidades, pois, no coletivo, o olhar do outro sobre nós lança luzes sobre o autoconhecimento, legitimando e confirmando prioridades momentâneas de autotransformação. É assim que há solidariedade permanente e generosa, além de útil fraternidade entre os seres humanos encarnados e desencarnados, contribuindo cada qual a seu modo e possibilidades, na conquista evolutiva individual, mas jamais solitária, porque se alimenta da riqueza contributiva dos irmãos de caminhada.

Autotransformar-se é um ato saudável de amor a si mesmo e ao semelhante porque, na medida em que desenvolvemos nossos potenciais positivos, vamos, também, partilhando uma nova maneira de ser e de agir na sociedade, plena dos valores que o mundo de hoje requer: solidariedade, igualdade, justiça social, integridade e ética, entre tantos outros. Autotransformação solicita-nos que construamos um relacionamento crescentemente ético conosco mesmos, com todos os semelhantes, em todas as situações e circunstâncias da vida. Isso possibilita-nos criar equilíbrio e harmonia interior, indicadores de saúde integral em nós mesmos. Autotransformação é, por tudo isso, a possibilitadora de acessarmos o caminho da conexão com o “Divino” que tanto buscamos.

O autotransformar-se vai sendo conquistado no enfrentamento e análise ética entre a vivência de nossa liberdade e o reconhecimento de individuais necessidades evolutivas. Nesta aparente contradição, vamos desenvolvendo potenciais positivos e construindo nossa identidade espiritual com base nos princípios altruístas da Filosofia Espírita. Autotransformar-se, uma maravilhosa possibilidade de escolha!

Referências Bibliográficas

– O Espírito e o Tempo – Introdução Histórica ao Espiritismo. José Herculano Pires. Editora Pensamento.
– Caderno Cultural Espírita – A Influência do Espiritismo na Evolução do Homem Contemporâneo. Ciro Pirondi.
– Novo Pensar: Deus, Homem e Mundo. Jaci Regis. Editora ICKS.

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