Opinião em tópicos

30 anos

Esta coluna acaba de completar 30 anos. Começou com o jornal “Opinião”, do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre, em agosto de 1994. Há cerca de 12 anos, quando o “Abertura”, do Instituto Cultural Kardecista, vinha sendo editado pelo saudoso Eugenio Lara, a convite dele, passou também a ter espaço neste jornal.

Tendo eu deixado, agora, de editar o “Opinião”, substituído que está sendo por um blog no portal do CCEPA, a coluna, entretanto, sobrevive. E, a convite do atual diretor do “Abertura”, o querido amigo Alexandre Cardia Machado, vai seguir presente também neste valoroso e histórico periódico, filho dileto do saudoso Jaci Regis.

Até quando? Não sei. Próximo de completar 84 anos, vou, pouco a pouco, encerrando meu labor jornalístico espírita, que já ultrapassou quatro décadas de exercício voluntário e prazeroso. Se sentir que a lucidez me falha, paro. Se eu não perceber, me avisem!

Muitas mudanças

Fiz as referências acima, refletindo sobre as mudanças ocorridas no meio espírita ao curso das três últimas décadas e das quais esta coluna e os jornais em que inserida foram testemunhas, e, em alguma medida, propulsores.

Se hoje, nos meios mais atualizados e progressistas do espiritismo, possa se entender que a discussão de se ele é ou não religião seja um tema superado ou de menor importância, há de se convir que aquele debate foi o estopim das grandes transformações. Claro que o tema não é novo e nem dele foram pioneiros o Grupo de Santos e o Centro Cultural Espírita de Porto Alegre. Desde Kardec, ou logo após ele, esse debate sobre a verdadeira identidade do espiritismo é alimentado.

Entretanto, foi justamente nos anos 70, 80 e 90 que, protagonizada, inicialmente pelo jornal “Espiritismo e Unificação”, depois “Abertura”, editados por Jaci, seguido por “Opinião”, do CCEPA, a contestação da condição de religião, assim tida maciçamente pelos espíritas brasileiros de então, ganhou força transformadora. Muito contribuiu com isso a CEPA que, na gestão de Jon Aizpúrua, passou a ter presença e voz, que muitos quiseram calar, no Brasil.

Revelação

Importa é que aquele debate, mais do que se centrar em mera questão semântica – religião ou moral? -, serviu para a gente refletir na direção de que tratar o espiritismo como uma religião o levaria, nesta pós-modernidade, ao seu definhamento e, mesmo, ao suicídio.

Mais do que nunca, especialmente depois que as igrejas pentecostais e neopentecostais tomaram de assalto a América Latina e, particularmente, o Brasil, religião passou a ser a antítese de conhecimento e progresso, para se tornar expressão máxima do conservadorismo.

Religião, mais que tudo, é tida como “revelação divina”. E com o deus dos religiosos não se discute. O que ele revelou vale para toda a eternidade e é insuscetível de mudanças.

Embora tenha concebido o espiritismo também como uma “revelação”, Kardec tomou a expressão em seu sentido etimológico. Entendeu-a como a retirada de véu sobre alguns conhecimentos antes cobertos pelo dogma e pelo mistério, graças ao diálogo com os espíritos.

Reatar laços

Entretanto, como também afirmou Allan Kardec, sendo os espíritos nada mais do que seres humanos vivendo em outra dimensão, não são eles infalíveis e nem detentores de todas as verdades. Isso faz de suas revelações nada mais que opiniões. Em alguma medida, e dependendo de que espíritos provenham, hão de ser respeitáveis opiniões, mas sempre suscetíveis de exame racional e de atualizações a partir de novos conhecimentos que se interpenetram nos âmbitos da humanidade encarnada e desencarnada.

Isso é que nos diferencia fundamentalmente da religião e da imutabilidade da presumível revelação divina. Esta, para nós, espíritas, é sinônimo da lei natural, gravada em nossas consciências e, progressivamente, melhor compreensível.

Nas três décadas de existência desta coluna, pôde seu modesto autor testemunhar e registrar que esse entendimento cresceu muito no meio espírita. E é sobre esse possível consenso que poderemos, talvez, reatar laços ontem desfeitos.

Opinando

Uma Institucionalidade para o Livre Pensar

A grande maioria dos livres pensadores espíritas brasileiros que as tecnologias da comunicação estão revelando nos últimos anos, através de palestras “lives”, grupos de whatsApp, “podcasts”, “blogs” etc, além da publicação livros e monografias, são oriundos de centros espíritas e instituições tradicionais onde não mais encontraram ambiente para suas falas e questionamentos, alguns até mesmo sendo destituídos de suas funções por expressarem seus posicionamentos políticos em divergência com a visão conservadora dos dirigentes.

A multiplicação de pequenos grupamentos autônomos – alguns em formato virtual – e a interação entre seus membros através das redes sociais, está revelando um acelerado crescimento do chamado “campo” ou “segmento” contra hegemônico do MEB reunindo espíritas progressistas, humanistas, laicos e, mesmo, religiosos mas não dogmáticos, aspirantes a um espiritismo atualizado, pluralista, engajado socialmente, que dialoga com a diversidade, com o mundo acadêmico, referenciado em Allan Kardec, ponto de partida do edifício doutrinário do espiritismo, mas sem sacralização da sua obra.

Vários eventos de caráter nacional passaram a ser promovidos arregimentando intelectuais espíritas descontentes com o conservadorismo instalando-se um vigoroso processo de desdogmatização no MEB.

Nesse contexto, não pode ser menosprezada a importância da CEPA pelo pioneirismo na defesa dessas ideias, há várias décadas, inicialmente como confederação pan-americana e, a partir de 2016, assumindo sua atual configuração associativa de pessoas e instituições espíritas de vários países, com forte vocação para a geração de um movimento de ideias, sempre rejuvenescido, leve, fraterno, plural e alteritário.

A partir de 2020, a CEPA que, gradativamente vinha conquistando o respeito e a admiração de boa parte das lideranças espíritas, notadamente no Brasil, onde havia sofrido sérias resistências por parte do movimento federativo, intensifica o seu relacionamento institucional com diversas organizações e lideranças de perfil humanista e não dogmático. Essa aproximação foi impulsionada com a criação da Coordenadoria de Parcerias e Intercâmbio e de um quadro de “Amigos da CEPA” com a finalidade de consolidar laços de amizade e de troca de aprendizados.

Na “live” que a CEPABrasil promoveu no dia 17.08.2024 entrevistando o filósofo carioca Márcio Salles Saraiva, a respeito do seu livro “Espiritismo Hoje: Breve Introdução” recentemente lançado pela Editora Comenius, o presidente do CPDoc-Centro de Pesquisa e Documentação Espírita Saulo Albach lhe endereçou a seguinte pergunta: – É possível e/ou necessário reunir os espíritas progressistas, apesar das diferenças de interpretação a respeito da natureza do espiritismo, sem cair na falácia da “unificação”?

A essa questão, o entrevistado respondeu da seguinte forma: “- Eu acredito que o campo progressista poderia crescer a um ritmo bem maior e com maior consistência teórico-ideológica se ele conseguir se articular institucionalmente. Eu pergunto – Por que os espíritas progressistas, em vez de criticarem a institucionalidade conservadora, não desenvolvem outra institucionalidade? Que seja plural, democrática, horizontal… Já existem vários grupos, coletivos espíritas, presenciais ou virtuais que poderão convocar o primeiro congresso brasileiro do campo espírita progressista para pensar uma outra institucionalidade…”

Esse desafio aguçou o propósito que eu já alimentava ao perceber a necessidade de uma articulação entre esses grupamentos progressistas. Resolvi auscultar o amigo prof. Luiz Signates sobre o que achava da ideia, esta prontamente aceita com sinal verde para que eu prosseguisse nos contatos com outros coletivos.

Adotei como critério inicial convidar os grupos e organizações já integrantes do quadro de Amigos da CEPA, já que não dispunha de outros contatos.

Em 21.09.2024, representantes de dezoito (18) coletivos, institutos, centros, grupamentos especializados e associações espíritas culturais de perfil livre-pensador, humanista, plural, progressista, laico ou adogmático, com engajamento social, reunidos virtualmente, concordaram, unanimemente, em se organizar tendo por objetivo articular suas ações de maneira a impulsionar e tornar mais eficazes e exitosos os seus projetos.

Essa entidade terá mais o caráter de um movimento de articulação, com clara definição ideológica dentro de uma perspectiva humanista, progressista, adogmática, livre-pensadora, plural, socialmente engajada e referenciada no kardecismo. Ainda em estruturação, aberta a novos membros, construindo sua carta de intenções, denominação, regulamento etc., dentro do princípio da inclusão e da alteridade, deveremos atuar juntos naquilo que nos une e cada grupo continuará, com total autonomia, a fazer aquilo para o que foi criado.

É um campo em expansão, que já existia historicamente como embrião, desde os primeiros tempos do MEB, e que agora vem crescendo aceleradamente, como que “rejuvenescendo” o movimento espírita e buscando mantê-lo atual e atuante na busca de um mundo mais justo, solidário, fraterno, diverso e habitável.

Acredito ser esse um passo significativo e de grande influência nos rumos do movimento espírita.
A conferir!

 


“Live” que a CEPABrasil promoveu no dia 17.08.2024

Enfoque

A Lei da Destruição e a Guerra

O presente artigo procura contribuir para a reflexão e contextualização das questões da lei da destruição (Livro dos Espíritos, III parte, capítulo VI), dando destaque para o polêmico e sempre atual tema da guerra.

Conforme apresentada por Kardec, a lei de destruição possui similaridade com o conceito de impermanência da filosofia budista, que nos mostra que tudo no universo está sempre mudando, está sempre em transformação e que precisamos ter sabedoria para não cair na ilusão de criar apego gerador de sofrimento.

Entretanto, Kardec e os espíritos, ao contrário da abrangente lei de impermanência budista, limita a ideia de permanente transformação, apenas aos seres vivos, não ao mundo material.

728. A destruição é uma lei da Natureza?
— É necessário que tudo se destrua para renascer e se regenerar porque isso a que chamais destruição não é mais que transformação, cujo objetivo é a renovação e o melhoramento dos seres vivos.

Como bem observa Elias Moraes (1):
“A visão que se tinha do universo na Europa de Kardec, era de algo permanente que, uma vez criado, mantinha-se em eterno funcionamento, como um relógio, comparação que Kardec utiliza por diversas vezes ao longo da sua obra.”

Segundo o psiquiatra Sérgio Lopes (2),
“em nossas vidas, a lei da destruição se expressa frequentemente através de perdas. Perdemos a infância, perdemos a juventude, ninguém cresce, ninguém evolui sem enfrentar perdas. Faz parte da vida perder alguém em algum momento da existência.”

A ideia da impermanência na tradição ocidental foi analisada pelo grego Heráclito no século VI a.C., o filósofo do devir, do vir a ser, afirmava que tudo estava em permanente transformação, “nunca nos banhamos duas vezes nos mesmos rios”, a água do rio está sempre em movimento, constantemente renovada, nunca é a mesma, e nós também não somos os mesmos.

A ideia chave da visão espírita, a síntese de sua filosofia, é a evolução, sendo a destruição uma contingência da necessária renovação. Nada efetivamente “É” tudo “Está” e a destruição é mecanismo do processo de permanente transformação e evolução a que todo o universo está sujeito. Como diz a famosa sentença atribuída a Lavoisier, “Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”.

O capítulo distingue a destruição necessária, provocada pela natureza, da destruição abusiva, provocada pelo homem. Se a humanidade vive hoje uma grave crise ambiental, deve isto apenas a destruição abusiva, ao fato de havermos desrespeitado uma Lei Natural, a Lei da Conservação. Pelo abuso destruímos a natureza que nos sustenta.

Analisa o assassinato em várias circunstâncias, como as guerras ou a legítima defesa. Capítulo polêmico por discutir costumes da época, faz importante condenação do duelo como sendo um assassinato e um suicídio ao mesmo tempo. Afirma que a “honra”, que justificou os duelos até o início do século XX, (e no Brasil ainda é usado para justificar o feminicídio) seria apenas expressão doorgulho e da vaidade. Aliás, os valores da honra nunca foram os do cristianismo. Enquanto este dá importância à intenção, para determinar se há pecado, para aferir a honra de um homem, só conta o que se torna público, as aparências.

Chama a atenção o fato de Kardec inserir três questões sobre a relação do Homem com os animais dentro da lei de Destruição.

734. No seu estado atual, o homem tem direito ilimitado de destruição sobre os animais?
— Esse direito é regulado pela necessidade de prover à sua alimentação e à sua segurança; o abuso jamais foi um direito.

Matar pela segurança, quando a vida humana está em perigo, é ponto pacífico. Mas se na época de Kardec, alimentar-se com a carne era um recurso alimentar importante, atualmente, não podemos mais considerar uma necessidade matar animais para a alimentação.

Na época de Kardec, não se tinha uma boa compreensão dos mecanismos fisiológicos da utilização dos alimentos e de como se pode adequar e melhorar o valor nutritivo da alimentação. Não havia ainda a noção de que precisamos de nutrientes e não de alimentos, sendo hoje um mito afirmar que a proteína da carne é indispensável, pois nosso organismo não precisa de proteínas, mas de aminoácidos que podem ser todos encontrados nos alimentos de origem vegetal.

A questão 735 condena a caça esportiva, outro costume popular, como sendo uma inútil saciedade do prazer de destruir e faz o alerta: “toda destruição que excede os limites da necessidade é uma violação da lei de Deus.” A resposta da espiritualidade é clara e taxativa, a Humanidade não tem o direito de matar por prazer, mesmo que seja pelo prazer de comer a carne.

O capítulo posiciona-se também contra a pena de morte sob qualquer circunstância, atribuída invariavelmente ao atraso e a ignorância, prevê seu desaparecimento como sinal de progresso da humanidade. Ainda hoje, a pena de morte ainda é lei em mais ou menos 40% dos países do mundo, inclusive em países desenvolvidos como EUA e Japão, sendo a China o país que mais executa no mundo. Em alguns países onde a pena de morte é proibida, ocorre a chamada “execução informal”, feita pela violência policial ou por grupos de extermínio. O Brasil, por exemplo, tem a polícia que mais mata e é morta em todo mundo.

761 A lei da conservação dá ao homem o direito de preservar a sua própria vida; não aplica ele esse direito quando elimina da sociedade um membro perigoso?
– Há outros meios de se preservar do perigo, sem matar. É necessário aliás, abrir ao criminoso e não fechar a porta do arrependimento.

Apesar da pena de morte ser lei em toda Europa na época, Kardec demonstra, mais uma vez, fina sintonia com o pensamento iluminista. Em Paris,
Cesare Beccaria havia feito muito sucesso na segunda metade do século XVIII. Considerado um dos pais do direito penal moderno, Beccaria argumentava racionalmente pela abolição da pena de morte e da tortura, consideradas como inúteis, ineficazes e desumanas. Para Beccaria, assim como para Kardec, o meio mais seguro e eficiente de evitar que os homens praticassem o mal seria a educação.

 

Flagelos Destruidores

Sobre os flagelos destruidores coletivos, Kardec e os espíritos não atribuíram sua explicação como sendo resgate de débitos passados ou “queima de carma coletivo”. Os flagelos não são justificados como expiação, fruto da lei de causa e efeito (como muitos espíritas insistem em interpretar), mas por um ângulo mais positivo, para acelerar o progresso da humanidade como a “poda renova uma árvore”, “fazer a humanidade avançar mais depressa, realizando em alguns anos o que necessitaria de muitos séculos”.

Ainda que possamos admitir que o processo expiatório, possa estar presente no fenômeno dos flagelos destruidores, (como expresso na resposta da 741 “…cada indivíduo recebe, em menor ou maior proporção, a parte que lhe cabe…”) não é a sua lógica que motiva a existência desses flagelos.

José L. Boberg (3) lembra que:
“Tsunamis, terremotos, erupções vulcânicas existiam mesmo quando o ser humano não habitava a Terra. Independente da condição moral da criatura, ao encarnar neste planeta, todos estão sujeitos aos efeitos dos fenômenos da natureza. É, portanto, uma contingência, ficando totalmente por conta do imaginário, a ideia de que todos atingidos por esses fenômenos estariam “resgatando dívidas cármicas.”

Elias Moraes (4) comenta:
“Imagine toda a grandeza da logística, toda a complexidade da operação para reunir nas zonas litorâneas de dois continentes, num total de treze países atingidos, as 288 mil pessoas mortas, entre turistas e nativos, (fora as dezenas de milhares de feridos e os 5 milhões de desabrigados) na grande tsunami do Oceano Índico em 2004?”

Seguindo esse raciocínio, Wladisney Lopes (5) indaga:
“Se isto fosse um fato, qual a diferença entre os espíritos que trabalharam na execução dessa sentença vingativa e os nazistas, que “convidando” prisioneiros para um banho, os levavam para as câmaras de gás?”.

A mentalidade judaico-cristã, também marca especial presença na resposta 764, em que é feita a defesa veemente da pena de Talião como sendo “… a justiça de Deus, é ele quem a aplica…sois punidos naquilo em que pecais, aquele que fez sofrer seu semelhante estará numa situação em que sofrerá o mesmo.”

A questão 764 é um claro exemplo de quanto Kardec, em várias questões, se retira do terreno da filosofia e é dominado pela força da tradição da teologia judaico-cristã.

O mesmo raciocínio se faz presente na questão 745: “necessitará de muitas existências para expiar todos os assassínios de que foi causa, porque responderá por cada homem cuja morte tenha causado para satisfazer a sua ambição.”

Ainda em termos de mentalidade, o capítulo chama a atenção pelo eurocentrismo quando Kardec faz referência a costumes diferentes de outros povos, como nas questões 736 e 753 ou ainda na 755 em que atribui crueldade aos “povos primitivos ou selvagens”.

Segundo o historiador Diego Moraes, (6), na abordagem da guerra e dos flagelos destruidores: “é reproduzida a mentalidade católica do século V de Santo Agostinho, para quem a Providência Divina usava da guerra com o objetivo de castigar a maldade humana e seus pecados e como teste para os justos que depois da prova passariam a um melhor destino. Todo castigo divino seria corretivo, regenerativo, purificando pelo sofrimento a humanidade.

Em várias respostas essa mentalidade católica medieval marca presença, como na 738 “é necessário castigar o homem pelo seu orgulho e fazê-lo sentir a própria fraqueza” e também como instrumento de provação dos justos, “…as vítimas terão noutra existência uma larga compensação para os seus sofrimentos se souberem suportá-los sem lamentar.” (738.b) São provas que proporcionam ao homem a ocasião de exercitar sua resignação ante a vontade de Deus.(740)

Dentro dessa perspectiva providencialista católica, que as respostas dos espíritos expressam, inclusive aquilo que aparenta ser um mal, certamente acaba se revelando como um bem para a humanidade, seja como castigo divino a ser compreendido, possibilitando o resgate de débitos passados, seja com causa indireta de um bem maior futuro, como ter o progresso acelerado e receber “larga compensação para os seus sofrimentos se souberem suportá-los sem lamentar.”

A Providência fustiga nosso orgulho e purifica nossa fé pela incompreensível execução de seus insondáveis desígnios. Devemos crer com resignação, a fim de não nos atrevermos, com a temerária vaidade humana, a censurar Sua obra.

 

Da Guerra

“Qualquer guerra que já se travou, foi uma guerra injusta, exceto, é claro, aquela travada contra o inimigo”. (Wyndam Lewis)

O capítulo da Lei da Destruição apresenta o importante tema da guerra logo após abordar os flagelos destruidores da natureza. Essa simples aproximação provoca a percepção de que não haveria muita distância entre a violência deliberada produzida pelo ser humano com a violência das mais variadas formas de catástrofes naturais. Produz a confusão entre mecanismos naturais que estão fora de nosso controle, com as escolhas e decisões que tomamos coletivamente ao optar pela violência como solução dos conflitos. Desse provocado encontro, a naturalização da violência humana é ao mesmo tempo um pressuposto e seu inevitável resultado.

742- Qual a causa que leva o homem à guerra?
– Predominância da natureza animal sobre a espiritual e a satisfação das paixões. No estado de barbárie os homens só conhecem o direito do mais forte, e é por isso que a guerra, para eles, é um estado normal. A medida que o homem progride ela se torna menos frequente, porque ele evita as suas causas e quando se faz necessária ele sabe adicionar-lhe humanidade.

A reflexão sobre essa questão é um pouco extensa e será dividida em três partes:
1ª- A primeira parte da reflexão questiona como podemos conciliar a expressão “a medida que o homem progride a guerra se torna menos frequente… e ele sabe adicionar-lhe humanidade” com a violenta história do século XX que afronta a lógica dessa expressão e desafia a própria ideia de progresso?

Na época de Kardec, não participava do horizonte de expectativas europeu, imerso na ilusão do progresso iluminista e da superioridade do homem branco, que ainda haveriam guerras generalizadas entre as nações tidas por “mais civilizadas”, com tamanha brutalidade e crueldade como as duas guerras mundiais. Predominava a crença na impossibilidade de um conflito de grandes proporções entre países que eram considerados os portadores do mais alto grau de civilização.

O século XIX alimentou a utopia de um processo contínuo de um aperfeiçoamento da conduta moral e de um melhor convívio entre os homens civilizados. Essa ilusão caiu por terra quando o sonho da belle époque transformou-se no pesadelo europeu da guerra total de 1914.

De acordo com o historiador Eric Hobsbawm:
“o século XX foi o mais assassino que temos registro, tanto na escala, na frequência e na extensão da guerra […] como também pelo volume único das catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até os genocídios sistemáticos”.

Calcula-se que no século XX mais de 100 milhões de pessoas perderam a vida em guerras. Genocídio armênio, judeu, cigano, polonês, chinês, bósnio, ruandês, e mais recentemente, palestino, desde a 1ª Guerra Mundial, nossa época ainda está sendo marcada por grandes genocídios onde parece ocorrido a suspensão de quaisquer considerações morais.

Por acaso, com todo o progresso tecno-científico do século XX, as guerras se tornaram “menos frequentes”? Seria “adição de humanidade” explodir bombas atômicas sobre a população civil inimiga? Promover o horror do Holocausto? Não reconhecer direitos dos vencidos ou dos prisioneiros? Promover massacres sobre a população civil de países invadidos militarmente?

2º) A segunda parte da reflexão sobre a questão 742 questiona se existiriam “guerras necessárias”? Será que a violência de uma guerra pode ser justificada?

No Ocidente, a busca da justificação moral das guerras tomou a forma da teoria da “guerra justa”, que veio a se tornar um dos mais difíceis labirintos morais. Tanto Santo Agostinho como Tomás de Aquino desenvolveram argumentação tentando conciliar os valores cristãos com as guerras que podiam ser necessárias e justas.

Via de regra, invoca-se o direito de legítima defesa para justificar um conflito. A violência seria vista sempre como uma resposta ou uma reação ao que o outro é e, portanto, ao que ele poderia fazer, ainda que não tenha feito nada. Em todos os conflitos, a origem da violência estaria sempre no outro. É preciso que o culpado seja o outro e é preciso que a violência se traduza em preservação. Os governos envolvidos em guerra, mesmo sendo os agressores, em busca de legitimação, costumam alegar a defesa da pátria ou a defesa da liberdade e dos direitos humanos.

Seguindo esse raciocínio, se depreende que, em uma guerra, parece difícil poder haver duas razões justas para o combate, com os dois principais lados corretos em suas demandas. A guerra, assim, é vista como uma díade, ataque versus defesa, justo versus injusto, certo versus errado. Essa lógica é expressa claramente por Kardec ao formular a questão:

542- “Numa guerra a justiça está sempre de um lado; como os Espíritos tomam
partido a favor do errado?”.
– Sabeis que há espíritos que só buscam a discórdia e a destruição. Para eles a
guerra é a guerra; a justiça da causa pouco lhes importa.

Essa questão chama atenção pela forma ingênua que Kardec trabalha a sua subjetividade de maneira inconsciente e o quanto ele possui a ideia da guerra justa como um pressuposto. O inimigo, uma vez que estaria do lado errado, só poderia estar sendo assessorado por espíritos da mais baixa categoria da escala espírita, enquanto que os de categoria elevada estariam todos do lado da justiça, ou seja, do nosso lado.

Precisamos também considerar que é um tanto subjetiva a legítima defesa, pois nossa reação depende de um juízo, uma avaliação da situação de ameaça, do momento, da forma e dos meios de nossa reação para repelir as ameaças.

Principalmente, depois que Ghandi liderou a libertação de todo subcontinente indiano, com o militante princípio da não-violência, o uso da violência não pode mais ser considerado o único método eficaz para a resolução de conflitos e de luta contra as injustiças. Por acaso, a violência e a guerra era uma opção para Jesus resolver os conflitos?

Ao admitir a eventual necessidade da guerra, a resposta da 742 entra em contradição com a resposta de outra questão do Livro dos Espíritos:
638O mal parece, algumas vezes, ser consequente da força das circunstâncias. Tal é, por exemplo, em certos casos, a necessidade de destruição, até mesmo do nosso semelhante. Pode-se dizer, então, que há infração à lei de Deus?
— O mal não é menos mal por ser necessário mas essa necessidade desaparece à medida que a alma se depura passando de uma para outra existência; então se torna mais culpável quando o  comete, porque melhor o compreende.

Segundo Marcelo Jasmin (7), “não há como elaborar condições de legitimidade ou razoabilidade para o recurso da violência e da guerra. Fins eticamente justos são mais do que contaminados, são negados, pelos meios através dos quais a violência deliberada se exerce, ainda que evocada como
necessária ou legítima”.

Da mesma forma, para o Espírito que respondeu a questão 638, a violência de um ser humano contra outro seria sempre um mal que exclui necessariamente a presença do bem, e toda necessidade alegada como justificativa torna-se ilusória, na medida em que o espírito evolui e “melhor o compreende.”

3º) A terceira parte do comentário da questão 742 reflete sobre as paixões que levaram a guerra. Foram as paixões determinantes? Quais seriam elas? Será que apenas “a predominância da natureza animal e a satisfação das paixões” seria suficiente para explicar as causas das guerras modernas entre Estados-nação? Todas as explicações sociológicas e geopolíticas seriam dispensáveis para compreender as causas de uma guerra?

O Iluminismo fazia a afirmação de uma razão universal que, com o progresso e a educação, seria capaz de nos emancipar dos obscurantismos e dos instintos animais. Nessa concepção, a paixão descontrolada é a fonte da violência e um mundo de paixões sabiamente controladas pela razão seria um mundo sem violência ou guerras. As ideias de civilização, de razão e de progresso, estariam ligadas necessariamente a paz, enquanto as ideias de instinto, paixão, natureza, seriam negativas e vinculadas à guerra.

A resposta da questão 742 também estaria dentro da lógica da filosofia de Thomas Hobbes, que considera que a relação primeira, imediata e natural dos homens entre si é uma relação de guerra, o que ele chama de guerra de todos contra todos. Para Hobbes seria uma condição da natureza humana ser violento.

O medo é a paixão dominante para Hobbes, mas além dele, o homem seria movido por duas grandes paixões, a cupidez e a vaidade. Para o espiritismo, assim como para os jansenistas, o egoísmo e o orgulho seriam a raiz de todas as nossas paixões e vícios.

Fréderic Gros (8) comenta que na tríade de paixões de Hobbes, a violência seria simplesmente um meio para alcançar um objetivo ou obter outra coisa, a segurança, os bens materiais, a glória e a reputação. Mas para a psicologia, haveria ainda uma segunda tríade de paixões que pode encontrar na destruição do outro uma fonte de satisfação e onde a violência pode ser justificada por ela mesma: a cólera ou raiva, o ódio e a crueldade, onde inclusive pode aparecer um gozo obtido com o sofrimento do outro.

Com essas duas tríades, teríamos uma identificação das paixões vinculadas à violência e as guerras. As grandes explicações filosóficas ou psicológicas tendem a se referir, à totalidade ou a uma parte delas, já que elas não são excludentes, podendo combinar-se entre si.

Mesmo que Ghoethe tenha razão ao afirmar que “nada se faz sem grandes paixões”, a psique do indivíduo não pode ser separada do contexto social. Rousseau já denunciava que a violência era social, produzida pela desigualdade. A guerra, mesmo estando vinculadas às paixões, é antes de tudo um fato social e assim precisa ser compreendida.

Para Isabelle Delpla (9), a explicação da violência pelas paixões revelou-se muito fraca e pouco pertinente para seu esclarecimento. Por isso, ela foi deixada de lado pelos pesquisadores de ciências sociais e pelos filósofos. Insistir na paixão é descartar as dimensões sociais, institucionais e econômicas da violência. Entretanto, não podemos esquecer que a visão de uma violência fria é igualmente insuficiente e ilusória. Segundo Delpla, convém desembaraçar-se da alternativa entre violência passional e violência sem paixão, pois ela é um obstáculo à compreensão dos fenômenos.

Delpla analisando o caso do nazista Eichmann, que participou do Holocausto, exemplifica e resume com clareza esse ponto:
“Eichmann, um antissemita convicto, um nazista fanático, escolheu tornar-se genocida, mas a chave de sua compreensão não se encontra apenas no homem e suas paixões, mas em suas ideias, na sociedade que lhes deu livre curso, no sistema político que as produziu e nas circunstâncias que as fizeram aceitáveis.”
“Suas paixões são produto do nazismo e da sociedade que o produziu. Apesar de existir forte ligação entre as paixões e a guerra, não podemos esquecer que elas também são construções sociais em transformação e que sozinhas não dão conta de explicar a violência social.”

Outra questão que merece uma reflexão crítica é a questão 749:
749- O homem é culpável pelos assassínios que comete na guerra?
– Não, quando é constrangido pela força; mas é responsável pelas crueldades que comete…

Santo Agostinho, ao refletir sobre a participação de um cristão na guerra, já defendia que os soldados não deveriam ser culpados individualmente pelos atos que cometeram por ordem de seu governo.

Os soldados não costumam se ver nem serem vistos, socialmente, como assassinos. Eles estariam no cumprimento de uma missão, justificados e legitimados em sua violência. Mas sabemos que não há mortes numa guerra sem agentes que as executem.

O crescente progresso dos artefatos bélicos modificou duas características dos conflitos bélicos, o distanciamento e a abrangência da ação, o que potencializa a dissociação entre o sujeito da violência e seu “objeto”. A impessoalidade crescente da ação bélica, propiciada hoje por drones e armas eletrônicas, pode ser entendida como sintoma de uma desumanização em escala mais ampla. O piloto do bombardeio, reduzido a mera engrenagem de um sistema que em muito o ultrapassa, quando libera a bomba atômica sobre Hiroshima, não enxerga que volatiliza, em frações de segundo, centenas de milhares de pessoas.

Não se trata de culpa ou inocência, a questão em jogo na questão 749 deve ser de responsabilidade. Diferente de se sentir culpado, a responsabilidade torna o homem consciente, levando-o ao reposicionamento frente a ação.

Fréderic Gross analisando a questão, aponta que não podemos dissociar completamente a responsabilidade da obediência:
“Não sou responsável, já que apenas obedeço a ordens”, ao que pode-se opor outro mantra: “Quando obedeces a outro, não esqueças jamais que antes de tudo, primordialmente, é a ti mesmo que ordenas obedecer” Ou seja, no fundamento de sua obediência há uma decisão livre e responsável. O homem livre obedece porque decidiu obedecer.”

Assim, para Gross:
“Responsabilizar o sujeito político é lembrar-lhe que ele nunca pode se manter completamente isento do sistema do qual participa e das violências sociais que esse sistema produz.”

Adolf Eichmann, estudado por Hannah Arendt, foi responsável pela prisão e transporte dos judeus aos campos de extermínio em toda Europa durante o Holocausto nazista. Em sua defesa, invocou sua lealdade e seu senso do dever, que “apenas obedecia ordens“ e que estaria “constrangido pela força” do sistema, como se o mal para ele, fosse inevitável e que, portanto, não poderia ser imputável a sua vontade.

Arendt com seu conceito de banalidade do mal observou que a máquina de morte do Holocausto nazista foi eficaz e terrível porque foi praticada por funcionários zelosos e obedientes e não por sádicos cruéis ou monstros sanguinários. Para Arendt, a raiz do mal, sua banalidade, consistiria na separação entre a responsabilidade e a obediência, o que torna possível fazer o mal, matar pessoas às centenas, sem experimentar necessariamente, a sensação de fazer o mal.

Seguindo em nossa análise sobre a abordagem da guerra no livro dos Espíritos, encontramos a 744 e seu complemento, 744ª, que juntas, seriam candidatas a serem eleitas uma das mais problemáticas respostas de todo o Livro dos Espíritos.

744. Qual o objetivo da Providência ao tornar a guerra necessária?
— A liberdade e o progresso.

744.a) Se a guerra deve ter como efeito conduzir à liberdade, como se explica que ela tenha geralmente por fim e por resultado a escravização?
— Escravização momentânea para sovar os povos, a fim de fazê-los andar mais depressa.”
(Sovar=amassar, surrar, bater), existem várias traduções desta frase,
“Escravização temporária, para oprimir os povos, a fim de fazê-los progredir mais depressa” (trad. Guillon Ribeiro) “Sovar os povos” também foi traduzido por “esmagar os povos.

Diego Moraes (6) toca nos pontos nevrálgicos dessa questão ao indagar:
“A Providência não teria outros meios para atingir seus objetivos e precisaria promover a guerra? Não seria preferível gastar mais tempo para alcançar o progresso?”

Ainda que admitamos, que os povos derrotados na guerra, que foram oprimidos e escravizados, estivessem “progredindo” mais depressa, o que acontece com os vencedores? Também estariam progredindo moralmente mais depressa? Matar, oprimir e escravizar os outros povos não só acelera nossa evolução como atende aos planos da Providência? Não estaríamos com esse tipo de raciocínio reproduzindo a ideia da “Guerra Justa ou Santa”.

Essa resposta não estaria simplesmente justificando as matanças, os crimes contra a Humanidade, como na 1ª e 2ª Guerras? Não estaria justificando inclusive o Holocausto?”

O mesmo tipo de raciocínio podemos encontrar na 584, quando Kardec pergunta:
584- Qual pode ser a natureza da missão do conquistador, que só tem em vista satisfazer a sua ambição e para atingir o alvo não recua diante de nenhuma calamidade?

— Ele não é, na maioria das vezes, mais do que um instrumento de que Deus se serve para o cumprimento de seus desígnios. Essas calamidades são, muitas vezes, o meio de fazer avançar mais rapidamente um povo.

Podemos aceitar a interpretação que enxerga os “conquistadores” que promovem verdadeiras calamidades humanas, como o genocídio ou os crimes contra a Humanidade, como “instrumentos de Deus no cumprimento de seusdesígnios, para avançar mais rapidamente um povo”?

A Humanidade pode até tirar importantes lições das guerras e das calamidades humanas decorridas das guerras, mas daí acreditar que a Providência Divina a torne necessária ou venha a promovê-la, no velho estilo “os fins justificam os meios”, soa no mínimo muito estranho. Que Deus seria esse que se utilizaria de tanto horror apenas para que a Humanidade progredisse mais depressa?

Enquanto Kardec escrevia sua obra, a França do ditador Napoleão III, iniciava sua expansão imperialista conquistando a Indochina (Vietnã) e o Senegal em 1864. Realizava a segunda Guerra do Ópio (1860), junto com a Inglaterra, para dominar o comércio da China. Invadia o México derrubando o presidente Benito Juárez e colocando o imperador Maximiliano no poder (1862 a 1866).
A abordagem sobre a guerra no Livro dos Espíritos se confunde com o discurso de políticos e empresários na defesa do imperialismo na época, num claro alinhamento ideológico. Podemos identificar tal sintonia, por exemplo, no editorial do jornal Edimburgh Review de 1885, citado por Laima Mesgravis (10):
“O que nos empurra ao Egito e a França ao Marrocos não é a cobiça de domínio e desejo de adquirir novas possessões quanto o sentimento de que nós podemos instaurar ordem onde existe caos, fertilidade onde existe esterilidade. […] Não somos vorazes grileiros, mas os apóstolos do progresso, os missionários da civilização ocidental.”

Segundo o discurso imperialista, as guerras de conquista colonial e exploração dos outros povos seria uma espécie de “dever moral”, pois o europeu estaria acelerando o desenvolvimento da humanidade como um todo e levando o “progresso” e a “moderna civilização” para os povos “atrasados e selvagens”.

Segundo o Livro dos Espíritos, o conquistador europeu, ao “escravizar temporariamente” ou “sovar os povos”, seria um missionário ou “um instrumento de Deus no cumprimento dos seus desígnios”.

Rodolfo Jacarandá (11) nos lembra também, o quanto a moderna noção de progresso não está dissociada de suas origens políticas e históricas e foi amplamente usada para justificar o massacre de indígenas, o aperfeiçoamento de novas formas de escravidão e as guerras de expansão e conquistas imperialistas, cujas consequências geram conflitos em todo mundo até hoje.

Para encerrar a reflexão, vale ainda um pequeno comentário da questão 745:
– Que pensar daquele que suscita a guerra em seu proveito?

— Esse é o verdadeiro culpado e necessitará de muitas existências para expiar todos os assassínios de que foi causa, porque responderá por cada homem cuja morte tenha causado para satisfazer a sua ambição.

O homem não pode usar a guerra em proveito próprio. Fazer a guerra na defesa de seus interesses seria incorrer em grande culpa. Porém, se for para proveito dos planos da Providência, como a questão 744 aponta, estaria autorizado a matar sem culpa? Deus se opõe apenas aos que fazem guerras em proveito próprio? Mas existe alguma guerra que não tenha sido motivada pelo interesse de seus promotores?

 

Concluindo

Esse é um capítulo muito importante das leis morais por discutir a violência e propor a sua superação como solução de conflitos, condenando, por exemplo, a prática do duelo.

Também assume relevância a interpretação dos flagelos destruidores, por contrariar a visão dominante do movimento espírita brasileiro, que costuma atribuir os flagelos destruidores à expiação e ao resgate de débitos passados, dentro de uma leitura mecânica e simplista da lei de causa e efeito, que muito se aproxima da pena de talião.

Ao manifestar a mentalidade do providencialismo católico e do eurocentrismo imperialista de seu tempo, esse capítulo necessita de uma especial contextualização, buscando ampliar nossa compreensão do fenômeno da violência com as novas luzes trazidas pela filosofia e pelas ciências humanas contemporâneas.

A banalização da violência e o desprezo à vida tem assumido tamanha naturalidade nas relações sociais e internacionais, que se faz necessário problematizar essas questões, chamando atenção para os riscos de sua legitimação.

Como bem conclue Isabelle Delpla:
“Toda possibilidade de compreensão de um fenômeno social, como a guerra, retira-lhe uma parte do seu mistério e permite pelo menos escapar um pouco de sua influência. Estudar a guerra, não é ceder a um fascínio mortífero por esse mal e encontrar desculpas para sua violência; é manifestar a capacidade de atacar as ilusões das quais, em maior ou menor escala, ainda costumamos nos alimentar.”

OBS: Este texto é uma síntese das principais referências citadas a partir do entendimento de Flávio C. Bello com o intuito de subsidiar a conversação sobre as Leis Morais, no grupo de estudos do Livro dos Espíritos, realizado no CCEPA.

Referências:
1) Contextualizando Kardec, Do século XIX ao século XXI – Elias Inácio Morais, Ed. AEPHUS
2) Leis Morais e Saúde mental – Sérgio Luis da Silva Lopes, Ed. FEB
3) As Leis Divinas – José Lázaro Boberg, Ed. Fergs
4) Vídeo da AEPHUS: – Os flagelos destruidores e a Lei da Destruição: com Elias Moraes
5) Desencarne coletivo & Lei de destruição, Wladisney Lopes
6) Vídeo da AEPHUS: – A Lei da Destruição e a guerra: com Diego Moraes
7) Os Homens que amam a Guerra, Marcelo Jasmin
8) A ética da obediência, Frédéric Gros
9) Violência sem paixão, Isabelle Delpla
10) A Colonização da África e da Ásia, Laima Mesgravis, Ed. Atual
11) Vida Morte Vida – Rodolfo Jacarandá, Ed. Lachatre
12) As guerras podem ser justas? Costas Douzinas
13) A “Guerra Justa” São Tomás de Aquino e Outros Pensadores Cristãos
14) O Livro dos Espíritos, Allan Kardec, tradução de J. Herculano Pires
15) Vídeo – A Lei da Destruição, de André Trigueiro