Opinião em tópicos

Diversidade

Tenho visto companheiros espíritas muito preocupados. A causa vem de anos. Mas, dois fatores bastante recentes terminaram por ampliá-la exponencialmente: a pandemia e o consequente debate maciço de ideias via redes sociais.

Nasceu daí e se intensificou a diversidade de interpretações acerca de aspectos de certa relevância doutrinária. Enquanto o espiritismo foi tido e organizado como um movimento praticamente monolítico, com um sistema federativo “oficial” a ditar normas de organização e interpretações doutrinárias, divulgadas como orientações emanadas “do Alto”, parecia reinar a paz. Havia algumas dissidências, que corriam marginalmente e eram apontadas como obra das “trevas”, vinda dos “inimigos internos no espiritismo”. Mas eram quase invisíveis e inaudíveis pela grande massa formadora da “religião espírita”.

Kardec era, então, uma referência bastante remota, estudado por alguns “intelectuais”, distanciados do “espiritismo cristão e evangélico”, alimentado e sustentado este pela produção mediúnica de um ou dois médiuns, intérpretes do pensamento de dois ou três espíritos de forte impregnação católica.

A DESCOBERTA DE KARDEC

Tudo começou a mudar com a implantação dos programas de estudos nas casas espíritas. Mesmo que, nas cartilhas oficiais, fossem recomendadas preferencialmente fontes de estudos provindas da mediunidade “à brasileira”, modelo “emmanuelino”, “andreluizista” e “bezerrista”, era impossível, num estudo sério, patrocinado pelas federações, deixar de lado os pressupostos básicos de Kardec. Uma mensagem mediúnica de Chico Xavier, atribuída a Bezerra de Menezes, propunha, então: “Kardequizar é a legenda de agora”, como a anunciar uma nova etapa para o espiritismo brasileiro, a partir dos pressupostos básicos de seu fundador.

O movimento espírita qualificou-se com a “descoberta” de Allan Kardec. Mas, ao mesmo tempo, passou-se a atribuir a ele uma aura de infalibilidade. Expressões como “todo o espiritismo está em Kardec” ou “fora de Kardec não há espiritismo” fortalecerem os grupos da chamada “ortodoxia kardeciana”. Escritores lúcidos e conferencistas ilustres corajosamente criticavam a produção mediúnica, de caráter evangélico, tão abundante em nosso meio, mas não ousavam criticar Kardec. Dir-se-ia, hoje, que “passavam pano” em eventuais incongruências kardecianas, evidenciadas pelo avanço do conhecimento ou evolução cultural, social e política.

Quando a CEPA, em seu Congresso do ano 2.000, em Porto Alegre, acenou com a indagação: “Deve o espiritismo atualizar-se? ”, abriu-se uma nova e promissora fase ao movimento. Atualizar o espiritismo implicaria não apenas em contextualizar a obra de seu fundador, escrita em meados do Século 19, como também apontar eventuais equívocos, incompatíveis com a cultura e os conhecimentos atuais. Tratando-se de uma obra humana, fruto do diálogo entre a humanidade encarnada e humanidade desencarnada, é evidente que não conteria ela toda a verdade. Seus princípios fundamentais, muito bem deduzidos na literatura kardeciana, escorados na “lei natural, eterna e imutável”, exigiam, no entanto, permanente adaptação à evolução do conhecimento. A lei natural tem diversificadas aplicações e diferentes níveis de compreensibilidade no tempo e no espaço.

UM NOVO PARADIGMA DE CONHECIMENTO

O espiritismo, bem visto, propõe um novo paradigma de conhecimento, a partir da realidade do “Espírito”, definido na questão 23 de O Livro dos Espíritos como “princípio inteligente do universo”. Sua abrangência, pois, tem a dimensão do universo. Tal amplitude torna possível diferentes formulações, a partir de diversificadas perspectivas.

Não deve, assim, causar mal-estar a existência, no meio espírita, de diferentes enfoques do paradigma espírita, assumidos por grupos que se fortaleceram na última década e que, mesmo, eventualmente, fora dos centros espíritas e suas estruturas hierárquicas, alimentam e revigoram o pensamento espírita valendo-se, preferencialmente, da moderna comunicação eletrônica. A eles deve-se a eclosão de um novo e interessante capítulo da história do espiritismo. Vale, ali, a crítica ao próprio Kardec, preservando-se e revalidando-se, embora, os princípios da filosofia que nos legou. Kardec nos autorizou a tanto. Mais do que isso: estimulou que seus pósteros atualizassem e contextualizassem sua obra, à luz do progresso das ideias e pelo exercício do livre pensamento. É isso, fundamentalmente, que nos diferencia das religiões. E é justamente a essa postura que está condicionada a própria sobrevivência do espiritismo.

INCONFORMISMO

Uma proposta paradigmática da dimensão do espiritismo não cabe, assim, numa fôrma na qual o prenderam, por décadas, notadamente no Brasil, onde se desenvolveu sua perspectiva “cristã e evangélica”. Era natural que surgissem e se ampliassem, graças, principalmente, à explosão das redes sociais, pessoas e grupos “inconformados”. Isto é: aqueles cujas ideias não mais cabiam na fôrma onde o acomodaram.

Esses grupos podem não constituir um segmento monolítico, mas seus integrantes são livres-pensadores, terreno onde, diferentemente do universo dos crentes, está situado o espiritismo. Eles delineiam, quiçá, o futuro do espiritismo que, como teoriza Marcio Sales Saraiva, em “Espiritismo hoje: breve introdução” (Editora Comenius/2024) “talvez não tenha o nome ‘espiritismo’ e as referências explícitas a Allan Kardec sejam ralas e distantes”. Entretanto, como ainda assinala Saraiva, temas como “Deus (…), reencarnação, comunicações extrafísicas, pluralidade de mundos habitados, infinitude, relativização da morte física, terapias alternativas”, poderão “forjar um pacote de crenças e práticas para este mundo pós-religioso do século 21”.

Mesmo que assim seja, presumo eu, Allan Kardec terá um lugar de destaque nessa história. E o espiritismo será lembrado como a mais forte referência pela semeadura de um novo paradigma de conhecimento, em período onde o mundo ainda transitava da Idade Moderna à Contemporaneidade.

Opinando

Espinoza em O Livro dos Espíritos

Grupo Espírita Gabriel Delanne/Caruaru-PE

Baruch de Espinoza

Baruch de Espinoza foi considerado um marrano. Marrano é o termo que, na península Ibérica (Espanha e Portugal), se dava ao judeu ou mouro que, embora professando publicamente sua adesão ao cristianismo para evitar perseguições, continuava ocultamente fiel à sua primitiva religião (judaica ou muçulmana). A apresentação de Espinosa como um marrano é realizada por Marilena Chauí (1983) no prefácio da coleção Os Pensadores.

O nascimento e origem de Espinoza tem a coincidência de três aspectos que lhe marcaram profundamente: nasceu em um país europeu, teve a influência judaica e, por último, a influência cristã. Seu nome de batismo foi Baruch (ou Bento em português, ou Benedictus em latim) e seu natalício foi no dia 24 de novembro de 1632, em Amsterdam, Países Baixos, na Europa, em uma família judaico portuguesa.

Primeiramente recebeu toda uma formação judaica dos seus pais, tornando-se um conhecedor e crítico das matrizes do Judaísmo e seus estudiosos. Em decorrência de suas análises críticas às bases religiosas judaicas foi considerado herege. Afastou-se do judaísmo, como excomungado da comunidade rabínica. Posteriormente adentrou-se no cristianismo, estudando o humanismo clássico, pelas linhas do protestantismo calvinista (CHAUÍ, 1983, p. 7), tornando-se também um crítico da Bíblia e de toda forma de crença supersticiosa. Tendo acesso à filosofia de Descartes, aprofundou-se cada vez mais numa visão racionalista da vida e de Deus. Foi autor de várias obras em vida: o ensaio Tratado da correção do Intelecto (De Intellectus Emendatione), Princípios da Filosofia Cartesiana, Tratado sobre a Religião e o Estado. Após sua morte foram publicadas as seguintes obras: a Ética, o Tratado da Correção do Intelecto, o Tratado Teológico-Político, uma Gramática Hebraica e as Cartas (CHAUÍ, 1983, p. 7).

Sua obra Ética, publicada post mortem, destaca-se das demais por tentar demonstrar “(…) como Deus é a causa racional produtora e conservadora de todas as coisas, segundo leis que o homem pode conhecer plenamente” (CHAUÍ, 1998, p. 8). Este trabalho foi bastante criticado também pelos cristãos por entenderem que Espinosa estaria destituindo a ideia de Deus-criador e aproximando-se de uma visão imanente e quase panteísta de Deus-Natureza.

Espinosa faleceu num domingo, 21 de fevereiro de 1677, aos quarenta e quatro anos, vitimado pela
tuberculose.

A Ética e os Pensamentos Metafísicos de Espinosa sobre a concepção de Deus

Assinando a obra como Benedictus (tradução do hebraico Baruch) Espinoza, assim dá-lhe o título: Ética demonstrada em ordem geométrica. A Ética de Espinosa, como é comumente conhecida, é dividida em cinco parte: Primeira parte – Deus; Segunda parte – A natureza e a Origem da Mente; Terceira parte – A Origem e a Natureza dos Afetos; Quarta parte – A Servidão Humana ou a Força dos Afetos; Quinta parte – A Potência do Intelecto ou a Liberdade Humana. O filósofo não chegou a ver essa obra publicada.

Esta obra é apresentada pelo filósofo com definições preliminares, demonstrações filosóficas, axiomas, corolários e proposições como teses formuladas por sentenças simples que, no entanto, requerem e propõem amplas discussões. Para este artigo nos deteremos em breve atenção para a primeira parte da Ética de Espinosa que trata de Deus, apresentando algumas de suas teses, cuja similaridade com a filosofia espírita se torna evidente, principalmente quando lemos O Livro dos Espíritos.

A sexta das definições preliminares de Espinosa é a de que Deus é “(…) o ser absolutamente infinito, isto é, uma substância composta de infinitos atributos, cada um deles exprimindo uma essência eterna e infinita”. Aqui a noção de infinito relacionada a Deus.

O axioma terceiro proposto por Espinosa é de que “dada uma causa determinada, segue-se necessariamente um efeito (…)”. Aqui a concepção de causa e efeito para compreender a existência divina.

A proposição XI admite que “Deus, ou, dito de outro modo, uma substância composta de infinitos atributos, cada um deles exprimindo uma essência eterna e infinita, existe necessariamente”. Observamos que nesse trabalho filosófico Espinosa utiliza a expressão ‘substância’ como substituto para ‘Deus’, já rompendo com uma concepção antropomórfica da divindade.

Da proposição XVI o filósofo propõe o terceiro corolário: “Segue-se que Deus é absolutamente causa primeira”. Aqui a ideia de causalidade primária atribuída a Deus.

A proposição XVII afirma que: “Deus age apenas pelas leis de sua natureza e não é compelido por ninguém”. Nesse ponto da obra Espinosa associa a manifestação divina pelas leis do universo.

A seguir as proposições XVIII e XIX, respectivamente afirmam que “Deus é causa imanente de todas as coisas e não causa transitiva” e “Deus é eterno, ou, dito de outro modo, todos os atributos de Deus são eternos”. Estas são duas concepções atribuídas à divindade: causalidade e eternidade.

A demonstração da proposição XX é a de que “Deus e todos os seus atributos são eternos (…)”. Essa tese é complementada na proposição XXI: “Tudo o que se segue da natureza absoluta de um atributo de Deus deve existir sempre e ser infinito, ou, dito de outro modo, deve ser, por este atributo, eterno e infinito”. Aqui Espinosa defende a ideia de que todos os atributos concebidos a Deus devem ser necessariamente eternos.

Para Chauí (1998, p. 10) a Ética de Espinosa, principalmente na sua primeira parte “(…) procura mostrar de que modo Deus se produz a si mesmo, às coisas e ao homem, demonstrando que esse modo de autoprodução é o próprio modo de produção do real”. Através de suas teses, Espinosa apresenta uma concepção de Deus como Causa Cáusica de todos os seres e de todas as coisas.

Ainda em vida Espinosa escreveu Princípios da Filosofia Cartesiana, constando como apêndice a essa obra os Pensamentos Metafísicos, do qual extrairemos algumas notas do filósofo a respeito de Deus. Na primeira parte e no capítulo IV admite que Deus é Eterno. No capítulo VI defende que Deus é único, verdadeiro e bom.

Na segunda parte desse opúsculo filosófico, Espinosa desenvolve algumas dessas concepções e acrescenta no capítulo III que Deus é puro, onipresente e onipotente. No capítulo IV apresenta o atributo da imutabilidade divina e de que Deus é incorpóreo. No capítulo VII Espinosa demonstra que um outro atributo de Deus é o da onisciência.

Espinosa em O Livro dos Espíritos

Dois séculos se passam e poderemos reencontrar Espinosa participando do projeto de renovação espiritual do planeta através do movimento espírita francês, coordenado entre os encarnados por Allan Kardec, e coordenado entre os desencarnados pelo Espírito de Verdade. Detectaremos duas formas da presença de Baruch Espinosa em O Livro dos Espíritos:

  1. Através das psicografias selecionadas por Allan Kardec, embora sem assinatura, mas pelas ideias exaradas que são consentâneas com as apresentadas por ele mesmo na sua existência como filósofo;
  2. Através da escrita de Allan Kardec que, embora não citando Espinosa, é possível igualmente identifica-lo pelas ideias semelhantes às formuladas em várias de suas obras, das quais extraímos algumas concepções e citações no tópico anterior.

Assim, é possível defender a ideia de que Espinosa participou tanto diretamente via psicografias e que foram inseridas em O Livro dos Espíritos, quanto indiretamente quando Allan Kardec apresenta a síntese dos atributos de Deus, claramente identificadas nas obras e no pensamento defendido pelo filósofo do século XVII.

Inicialmente identificamos uma aproximação a Espinosa quando comparamos a primeira parte de O Livro dos Espíritos com a primeira parte da Ética: Allan Kardec denomina essa primeira parte sob o título ‘De Deus’ e Espinosa vai intitular sua primeira parte com o título ‘Sobre Deus’. As semelhanças prosseguem quando já de início à primeira questão de Allan Kardec para uma definição de Deus, os Espíritos responderam “Deus é a Inteligência Suprema, causa primária de todas as coisas”. No Escólio II da proposição XVII da Ética Espinosa defende que o intelecto divino é diferente do intelecto humano: “E, portanto, o intelecto de Deus, concebido como constituindo a essência de Deus, é na verdade causa tanto da essência como da existência de todas as coisas”.

Uma análise de perspectiva à distância sobre a primeira parte de O Livro dos Espíritos, especificamente no capítulo I, dá-nos uma compreensão das aproximações com o pensamento de Baruch de Espinosa, principalmente na sua obra Ética. O capítulo é dividido em 4 subcapítulos: 1 – Deus e o infinito; 2 – Provas da existência de Deus; 3 – Atributos da divindade; 4 – Panteísmo. Ao lermos a Ética de Espinosa em sua primeira parte (De Deus) ficamos como que impactados porque o filósofo racionalista trata dos mesmos aspectos, exceção do quarto tópico (panteísmo), embora essa ideia sobrepaire sobre todo o texto espinosiano já que ele utiliza a expressão ‘substância’, ou ‘natureza’ para designar a Deus. Allan Kardec talvez tenha inserido esse subcapítulo justamente para evitar qualquer dúvida a respeito, como ocorreu com o próprio Espinosa.

O subcapítulo 1 da primeira parte de O Livro dos Espíritos trata de ‘Deus e o infinito’, cujos temas são recorrentes e centrais na primeira parte da Ética de Espinosa. Nessa obra, Espinosa na  emonstração da definição que faz de Deus como um ‘ser absolutamente infinito’, esclarece a respeito do que entende pelo infinito divino: “Digo absolutamente infinito, não infinito em seu gênero (…) mas ao que é absolutamente infinito, pertence a sua essência tudo o que a exprime e não envolve nenhuma negação”. Nesse sentido Allan Kardec avança e apresenta uma crítica ao pensamento espinosiano quando esclarece à resposta da questão número três: “Deus é infinito em suas perfeições, mas o infinito é uma abstração. Dizer que Deus é o infinito é tomar o atributo de uma coisa pela coisa mesma, é definir uma coisa que não está conhecida por uma outra que não o está mais do que a primeira”.

Outra aproximação em O Livro dos Espíritos realizada ao pensamento de Espinosa é na questão quatro, do subcapítulo que trata sobre ‘provas da existência de Deus’, tanto na resposta dos Espíritos quanto no comentário de Allan Kardec, admitindo a ideia de causa-efeito.

No subcapítulo três de O Livro dos Espíritos que trata ‘dos atributos da divindade’ na questão 13 dá-se claramente a entender que Allan Kardec leu e se referenciou em Baruch Espinosa (Pensamentos Metafísicos) ao citar os atributos de Deus de ‘eterno, infinito, imutável, imaterial, único, nipotente, soberanamente justo e bom’, como já vimos no tópico anterior deste artigo. O próprio Allan Kardec irá realizar uma breve explicação sobre seis atributos de Deus e que encontra correspondência em Espinosa:

Allan Kardec (O Livro dos Espíritos) Baruch de Espinosa (Pensamentos Metafísicos)
Eterno Eterno (capítulo IV- Parte I)
Imutável Imutável (capítulo IV – Parte II)
Imaterial Incorpóreo (capítulo IV – Parte II)
Único Único (capítulo VI – Parte I)
Onipotente Onipotente (capítulo III – Parte II)
Soberanamente justo e bom Verdadeiro e bom (capítulo VI – Parte I)

Nesse subcapítulo por cinco vezes são registradas a palavra ‘razão’, tanto por Allan Kardec quanto pelos Espíritos Superiores. Baruch de Espinosa foi um filósofo racionalista. Essa evidenciação da presença de Espinosa em O Livro dos Espíritos apenas engrandece o Espiritismo em sua formação básica, além de corroborar a dimensão filosófica que Allan Kardec assume ao organizar e co-assinar a obra magna espírita.

REFERÊNCIAS:
CHAUÍ, Marilena. Espinosa: vida e obra in VICTOR CIVITA. Editor. Os Pensadores: Espinoza. São Paulo: Abril Cultural, 1983, 3a edição.
ESPINOSA, Baruch. Princípios da Filosofia Cartesiana (1663) in VICTOR CIVITA. Editor. Os Pensadores: Espinoza. São Paulo: Abril Cultural, 1983, 3a edição.
ESPINOSA, Baruch. Ética demonstrada em ordem geométrica (1677) in VICTOR CIVITA. Editor. Os Pensadores: Espinoza. São Paulo: Abril Cultural, 1983, 3a edição.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 2002.
VICTOR CIVITA. Editor. Os Pensadores: Espinoza. São Paulo: Abril Cultural, 1983, 3a edição

Enfoque

Sobre o suicídio

Recentemente o assunto do suicídio esteve bem presente para nós: o setembro amarelo, promovendo a prevenção, a notícia da morte assistida do escritor Antônio Cícero e, por último, o filme “O quarto ao lado”, com o tema da eutanásia. Em três países, três atitudes diferentes frente ao mesmo fato: a prevenção, a legalização e a penalização (seja de quem assiste o suicida, seja de quem quer que tenha conhecimento prévio e não denuncia a intenção).

O suicídio é uma ocorrência complexa, influenciada por fatores psicológicos, biológicos, sociais e culturais. A interrupção da vida pelas próprias mãos, desde a decisão até a execução, sempre foi um fato traumático para a nossa sociedade, eminentemente votada à preservação daquilo que é o seu valor mais alto – a vida – levando tantos cérebros a tratar do tema no campo de suas especialidades. O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), divergindo da ideia, comum na sua época, de que o suicídio é um ato dependente de fatores individuais, cabendo seu estudo exclusivamente à psicologia, desenvolveu a teoria1 de que esse fenômeno resulta de fatores de origem social, que poderiam influenciar indivíduos a procurarem a própria morte.

Durkheim classificou o suicídio em três categorias, a partir da forma como a sociedade (entenda-se: família, comunidade, profissão, religião, grupo político etc.) age sobre o indivíduo.

  • Suicídio egoísta – Comete-o o indivíduo que depende menos do grupo e mais de si próprio; ele se move para além do foco social coletivo, suas ações são determinadas por um individualismo excessivo. A predisposição ao suicídio surge quando o projeto individual, inerentemente frágil e não integrado num sistema social, se desintegra.
  • Suicídio altruísta – Ocorre quando há um excesso de integração ao grupo (social, familiar etc.), onde o indivíduo sente-se não só no direito de se suicidar, mas no dever de fazê-lo. Ao contrário do anterior, o suicida está convicto de uma causa superior à sua individualidade.
  • Suicídio anômico – Considerando-se que a ação individual e a regulação social são complementares, esse tipo de suicídio ocorre nos estados de anomia, quando a regulação cai e se perde a relação entre o indivíduo e a sociedade, como por ocasião de crises econômicas, ou quando ele se encontra em isolamento geográfico, alienação cultural etc., ou em contextos mais restritos, como nos casos de anomia conjugal ou familiar.

A teoria de Durkheim sofreu críticas por relacionar o suicídio exclusivamente a origens sociais, desprezando reais causas pessoais, como doenças mentais, por exemplo. Não obstante as críticas, podemos nos servir de sua classificação para avaliar as diversas situações que viveram os espíritos que, suicidas desencarnados, foram entrevistados por Kardec, conforme ficou registrado no livro O céu e o inferno, em sua 2ª parte, capítulo V – Suicidas (cuja leitura recomendamos). Pela narrativa de cada um, pode-se estabelecer os níveis de consciência, culpa e responsabilidade que guiaram seu ato e incluí-lo em uma das categorias.

Da leitura, constata-se que os espíritos de suicidas vivem, na erraticidade, aflições e sofrimentos não diferentes das de outros espíritos desencarnados devido a outras causas. O que há de semelhança entre uns e outros é o apego à vida material, que muitas vezes os faz permanecerem junto ao próprio corpo, sofrendo sua decomposição, como se ainda encarnados. Para os suicidas, porém, avulta o sofrimento moral: a decepção de ver continuado o sofrimento a que pretendiam dar fim, a culpa de terem infringido voluntariamente a lei de Deus e a dúvida angustiante de quando – e se – esse sofrimento terá termo. Por outro lado, nota-se que esse sentimento é aplacado quando o suicídio foi altruísta, isto é, causado na intenção de proteger alguém, preservar uma vida, ou na defesa de uma causa social imperativa – e na íntima convicção que essa intenção serviria como atenuante ao ato.

Finalmente, voltando aos eventos citados no início, o que dizer dos casos de eutanásia e morte assistida? É, sem dúvida, o específico uso do livre-arbítrio que uma pessoa faz ao deliberar, com pleno domínio da razão, negar-se ao avanço da demência ou de uma doença incurável, reservando-se uma “morte digna” e preservando as pessoas que lhe são mais próximas do longo e penoso acompanhamento até o fim natural. Ao olhar materialista, é uma atitude coerente, até louvável, na medida em que não lhe é dado distinguir qualquer sentido em continuar vivendo. Porém, quando se entende a morte como um marco na evolução do espírito, tal sofrimento surge como a última prova a ser enfrentada antes da libertação final. (Um dos espíritos entrevistados por Kardec lamentou-se: “Por que querer acabar com a vida quando já estava tão próximo do fim?”)

Ao contemplar, através do sofrimento, o benefício da eutanásia, cabe lembrar a exortação de Viktor Frankl2: “… sempre cada um dos instantes de que a vida é feita está morrendo, e aquele instante nunca mais voltará. Mas porventura não é essa transitoriedade algo que nos estimula e desafia a fazer o melhor possível de cada momento de nossas vidas? Certamente sim, e daí surge meu imperativo: “Viva como se você estivesse vivendo pela segunda vez e como se tivesse agido tão erradamente na primeira vez como está para agir agora. (…) Há uma abundância de possibilidades de dar sentido à existência.”
_____________________________________________
(1) Quintaneiro, Barbosa e Oliveira – Um toque de clássicos – Durkheim, Marx e Weber. Ed UFMG, 1999, Belo Horizonte
(2) Frankl, V. E. – Em busca de sentido – Ed. Vozes, 50ª edição, 2020, São Leopoldo, RS

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