Recentemente o assunto do suicídio esteve bem presente para nós: o setembro amarelo, promovendo a prevenção, a notícia da morte assistida do escritor Antônio Cícero e, por último, o filme “O quarto ao lado”, com o tema da eutanásia. Em três países, três atitudes diferentes frente ao mesmo fato: a prevenção, a legalização e a penalização (seja de quem assiste o suicida, seja de quem quer que tenha conhecimento prévio e não denuncia a intenção).
O suicídio é uma ocorrência complexa, influenciada por fatores psicológicos, biológicos, sociais e culturais. A interrupção da vida pelas próprias mãos, desde a decisão até a execução, sempre foi um fato traumático para a nossa sociedade, eminentemente votada à preservação daquilo que é o seu valor mais alto – a vida – levando tantos cérebros a tratar do tema no campo de suas especialidades. O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), divergindo da ideia, comum na sua época, de que o suicídio é um ato dependente de fatores individuais, cabendo seu estudo exclusivamente à psicologia, desenvolveu a teoria1 de que esse fenômeno resulta de fatores de origem social, que poderiam influenciar indivíduos a procurarem a própria morte.
Durkheim classificou o suicídio em três categorias, a partir da forma como a sociedade (entenda-se: família, comunidade, profissão, religião, grupo político etc.) age sobre o indivíduo.
- Suicídio egoísta – Comete-o o indivíduo que depende menos do grupo e mais de si próprio; ele se move para além do foco social coletivo, suas ações são determinadas por um individualismo excessivo. A predisposição ao suicídio surge quando o projeto individual, inerentemente frágil e não integrado num sistema social, se desintegra.
- Suicídio altruísta – Ocorre quando há um excesso de integração ao grupo (social, familiar etc.), onde o indivíduo sente-se não só no direito de se suicidar, mas no dever de fazê-lo. Ao contrário do anterior, o suicida está convicto de uma causa superior à sua individualidade.
- Suicídio anômico – Considerando-se que a ação individual e a regulação social são complementares, esse tipo de suicídio ocorre nos estados de anomia, quando a regulação cai e se perde a relação entre o indivíduo e a sociedade, como por ocasião de crises econômicas, ou quando ele se encontra em isolamento geográfico, alienação cultural etc., ou em contextos mais restritos, como nos casos de anomia conjugal ou familiar.
A teoria de Durkheim sofreu críticas por relacionar o suicídio exclusivamente a origens sociais, desprezando reais causas pessoais, como doenças mentais, por exemplo. Não obstante as críticas, podemos nos servir de sua classificação para avaliar as diversas situações que viveram os espíritos que, suicidas desencarnados, foram entrevistados por Kardec, conforme ficou registrado no livro O céu e o inferno, em sua 2ª parte, capítulo V – Suicidas (cuja leitura recomendamos). Pela narrativa de cada um, pode-se estabelecer os níveis de consciência, culpa e responsabilidade que guiaram seu ato e incluí-lo em uma das categorias.
Da leitura, constata-se que os espíritos de suicidas vivem, na erraticidade, aflições e sofrimentos não diferentes das de outros espíritos desencarnados devido a outras causas. O que há de semelhança entre uns e outros é o apego à vida material, que muitas vezes os faz permanecerem junto ao próprio corpo, sofrendo sua decomposição, como se ainda encarnados. Para os suicidas, porém, avulta o sofrimento moral: a decepção de ver continuado o sofrimento a que pretendiam dar fim, a culpa de terem infringido voluntariamente a lei de Deus e a dúvida angustiante de quando – e se – esse sofrimento terá termo. Por outro lado, nota-se que esse sentimento é aplacado quando o suicídio foi altruísta, isto é, causado na intenção de proteger alguém, preservar uma vida, ou na defesa de uma causa social imperativa – e na íntima convicção que essa intenção serviria como atenuante ao ato.
Finalmente, voltando aos eventos citados no início, o que dizer dos casos de eutanásia e morte assistida? É, sem dúvida, o específico uso do livre-arbítrio que uma pessoa faz ao deliberar, com pleno domínio da razão, negar-se ao avanço da demência ou de uma doença incurável, reservando-se uma “morte digna” e preservando as pessoas que lhe são mais próximas do longo e penoso acompanhamento até o fim natural. Ao olhar materialista, é uma atitude coerente, até louvável, na medida em que não lhe é dado distinguir qualquer sentido em continuar vivendo. Porém, quando se entende a morte como um marco na evolução do espírito, tal sofrimento surge como a última prova a ser enfrentada antes da libertação final. (Um dos espíritos entrevistados por Kardec lamentou-se: “Por que querer acabar com a vida quando já estava tão próximo do fim?”)
Ao contemplar, através do sofrimento, o benefício da eutanásia, cabe lembrar a exortação de Viktor Frankl2: “… sempre cada um dos instantes de que a vida é feita está morrendo, e aquele instante nunca mais voltará. Mas porventura não é essa transitoriedade algo que nos estimula e desafia a fazer o melhor possível de cada momento de nossas vidas? Certamente sim, e daí surge meu imperativo: “Viva como se você estivesse vivendo pela segunda vez e como se tivesse agido tão erradamente na primeira vez como está para agir agora. (…) Há uma abundância de possibilidades de dar sentido à existência.”
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(1) Quintaneiro, Barbosa e Oliveira – Um toque de clássicos – Durkheim, Marx e Weber. Ed UFMG, 1999, Belo Horizonte
(2) Frankl, V. E. – Em busca de sentido – Ed. Vozes, 50ª edição, 2020, São Leopoldo, RS