Pobreza é carma? Não há injustiçados? Voltemos a Kardec e Herculano Pires!
Como é sobejamente sabido, no Movimento Espírita Brasileiro hegemônico institucionalizado correm muitas ideias contrárias à codificação. São mistificações, mentiras, muitas vezes eivadas de má-fé. Uma das piores falsificações, e das mais cruéis, que se repete e propala constantemente nesse meio, é a de que “quem sofre é porque mereceu”. Daí a consequente despolitização, o alheamento das questões sociais, como se a miséria, a pobreza, a desigualdade fossem “justas”, “merecidas”. Na cabeça de muitos, a pobreza é a “lei de Deus” funcionando. Pensa-se erradamente: “o pobre mereceu; é justo que esteja assim, pela má utilização da riqueza que fez em outra vida”. Mas, alto lá! Pode ser isso ou não; quem o sabe? Na dúvida sobre cada caso, sempre cabem as perguntas: A doutrina permite julgar assim os irmãos? Não, decerto! (Allan Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. X, n. 11) A lei de Deus autorizou alguém a conhecer o passado de cada pessoa pobre, para tão assertivamente sentenciar que todas estão na pobreza devido ao que fizeram em vidas passadas? Ao contrário, Deus não faz esquecer, não vela esse passado? Sim, vela; é o que ensina a doutrina. (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, n. 392 e seg) Quem se arroga ter recebido revelação das existências passadas, portanto? De fato, ninguém tem essas revelações.
O que se faz, candidamente, é apenas uma dedução geral, a partir de um entendimento incompleto e mesquinho, de que todo o sofrimento da pobreza só pode ocorrer porque houve “merecimento”, ou seja, porque é expiação de faltas passadas. Eis do que se trata, para muitos: um “justiçamento cármico” inexorável (e nada doutrinário). A própria doutrina, em sua metafísica da lei divina, explica que o
sofrimento pode se dar por três causas: expiação (de faltas passadas), mas também por prova (teste de virtude, que não exige referência a faltas passadas) ou mesmo por missão! (Allan Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, n. 9.) De onde os sapientes mistificadores tiraram que toda a aflição da pobreza é expiação? De seu próprio mau juízo. E, ainda que fosse possível acessar a informação precisa de que alguém sofre na pobreza por expiação, qual atitude seria a correta, caridosa, frente a esse caso? A que a doutrina indica é clara: o alívio e a própria
extinção da mesma, jamais a conformação a uma suposta condenação. (Allan Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, n. 27.)
Além do mais, se há aflições cujas causas estão no passado (as “causas anteriores”), há muito mais que têm suas causas na atualidade (as “causas atuais”)! O recurso às causas anteriores se faz quando se trata de questões “que nenhuma filosofia resolveu até agora”. (Allan Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V. n. 6.) Ora, qualquer filosofia política, social, como a de Platão, de Rousseau, de Fourier, de Saint-Simon, de Marx, de Russell etc., explica as causas atuais da pobreza! Está nas relações injustas de poder, de um sistema de egoísmo, refletido numa sociedade com classes dominante e dominada, baseada na excludente riqueza pessoal; o que hoje se concretiza no capitalismo. E a saída proposta é uma nova forma de distribuição, numa sociedade de ajuda mútua e solidariedade, protetora e emancipadora, de tipo socialista. Portanto, é por desconhecimento e/ou má-fé que se procura a causa da pobreza entre as “causas anteriores”. O problema se
prende à injustiça social, à desigualdade das condições sociais. Desigualdade esta que, segundo a própria doutrina, é devida ao homem, à sua viciosa organização social, não a Deus, às suas leis ou à natureza. (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, n. 806 e seg., 930, 707, 717 etc.) E que deve desaparecer um dia, junto com orgulho e o egoísmo que a engendram. (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, n. 806 e 806a.) “Numa organização social sábia e previdente, a ninguém pode faltar o necessário.” (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, n. 930.)
Ouve-se um péssimo adágio, repetido aqui e ali em meios espíritas, para dar ares de sabedoria aforística a uma desumanidade, que diz: “Há a injustiça, mas não há injustiçados”… O quê! É como se um mecanismo oculto “aproveitasse” as injustiças do mundo, direcionando-lhes os seus devidos merecedores… Tal pensamento faz pintar as injustiças como “justas”! Apenas justifica as injustiças e, com isso, conforma a consciência perante a aflição de muitos. Pior: faz aceitar de bom grado a injustiça, numa indiferença tranquila, como condizente com a lei divina, reproduzindo-a e
perpetuando-a no meio social! Isso não é divino, não é doutrina espírita. É grave… é absurdo.
Em resumo, ninguém tem acesso ao passado de cada um para sentenciar sobre a sorte geral. E pensar assim, além de ser, para o espírita, demonstração de ignorância doutrinária, ainda constitui ato de desamor. É pré-julgamento, é preconceito. A doutrina condena tal prática e tais ideias. Ela veta adotar esse posicionamento frente aos sofrimentos dos pobres e afirma categoricamente: Há, sim, injustiçados; os pobres são injustiçados! Ninguém está autorizado a acusar os pobres de merecerem, ou
generalizar que tenham pedido, seu sofrimento no passado, valendo-se farisaicamente da ideia de reencarnação para justificar as injustas causas atuais da pobreza. E mais, todo sofrimento, mesmo que soubéssemos consistir em expiação, deve ser aliviado ou extinto, inclusive por uma melhor organização social! Não há lugar para o orgulho na normativa ética espírita, só para o amor. É preciso que a sociedade chegue a fundar suas instituições no amor, na ajuda mútua, na solidariedade. Devemos atuar para extirpar da face da Terra as causas atuais da pobreza, que são morais, políticas, econômicas e sociais. Assim, lemos em Kardec e em Herculano Pires:
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Não digais, portanto, quando virdes um de vossos irmãos atingido: “É a justiça de Deus, é preciso que ela tenha seu curso”; mas dizeivos, ao contrário: “Vejamos quais meios nosso Pai misericordioso colocou em meu poder para abrandar o sofrimento do meu irmão. … Vejamos mesmo se Deus não colocou em minhas mãos o meio de fazer cessar esse sofrimento; se não me foi dado, a mim como prova
também, como expiação talvez, deter o mal e substituí-lo pela paz”. Ajudai-vos, portanto, sempre em vossas provas respectivas, e não vos olheis jamais como instrumentos de tortura; esse pensamento
deve revoltar todo homem de coração, todo espírita, sobretudo; pois o espírita, melhor que todo outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de Deus. O espírita deve pensar que sua vida
inteira deve ser um ato de amor e de devotamento; que, o que quer que faça para contrariar as decisões do Senhor, sua justiça terá seu curso. Pode, portanto, sem temor, fazer todos os seus esforços para
abrandar a amargura da expiação, mas é só Deus que pode detê-la ou prolongá-la conforme o julgue a propósito. Não haveria um bem grande orgulho da parte do homem, de se crer no direito de revolver,
por assim dizer, a arma na chaga? De aumentar a dose de veneno no peito daquele que sofre, sob pretexto de que tal é sua expiação? Oh! olhai-vos sempre como um instrumento escolhido para fazê-la
cessar. Resumamo-nos aqui: estais sobre a Terra para expiar; mas todos, sem exceção, deveis fazer todos os vossos esforços para abrandar a expiação dos vossos irmãos, segundo a lei de amor e de
caridade. (Allan Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, nº 27.)
Está bem reconhecido que a maioria das misérias humanas tem a sua fonte no egoísmo dos homens. Então, desde que cada um pensa em si antes de pensar nos outros, e quer a sua própria satisfação antes
de tudo, cada um procura naturalmente se proporcionar essa satisfação a qualquer preço, e sacrifica sem escrúpulo os interesses de outrem, desde as menores coisas até as maiores, na ordem moral
como na ordem material; daí todos os antagonismos sociais, todas as lutas, todos os conflitos e todas as misérias, porque cada um quer despojar o seu vizinho.” (Allan Kardec, Obras Póstumas, pt. I, “O
egoísmo e o orgulho: suas causas, seus efeitos e os meios de destruílos”.)
Se [os preceitos de Jesus] fossem seguidos aqui embaixo, seríeis todos perfeitos: nada mais de ódios, nada mais de dissensões; direi mais ainda: nada mais de pobreza, pois, do supérfluo da mesa de
cada rico, muitos pobres se nutririam, e não veríeis mais, nos sombrios bairros que habitei durante minha última encarnação, pobres mulheres arrastando junto de si miseráveis crianças a quem
falta tudo.” (Allan Kardec, O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XIII, n. 9.)
Certamente que, por uma sábia organização social, podem-se aliviar bem os sofrimentos, e é ao que é preciso visar. … Guardai-vos de ver, em todos os pobres, culpados em punição; se a pobreza é para
alguns uma expiação severa, para outros é uma prova que deve lhes abrir mais prontamente o santuário dos eleitos. … Merecei por vossas virtudes que Deus só vos envie bons Espíritos, e, de um inferno, vós fareis um paraíso terrestre. (Allan Kardec, Revista Espírita, ago. 1861, Dissertações, “O pauperismo”.)
Os pobres são os injustiçados da Terra. Os ricos são os que amealharam os bens da Terra e fizeram a sua própria justiça. O reino é do Céu, mas o Jovem Carpinteiro o trouxe para a Terra, a fim de
que a justiça se faça através do amor. Como é difícil aos homens compreenderem essa dialética Divina! Há dois mil anos admiram a grandeza do Reino, desejam atingi-lo, mas não jogam fora o fardo
terreno que os impede de chegar a ele. … Os homens que amealharam fortuna da Terra amealharam egoísmo, injustiça e impiedade. Os bens da natureza pertencem a todos, e os que
transformam esses bens para produzir outros não podiam esquecer o dever da fraternidade. Como pode regozijar-se na opulência o homem que vê seus irmãos morrendo de fome, doença e miséria nas
sarjetas da cidade ou nos paióis do campo? “Mas ele pode auxiliar as obras sociais.” … Derrubar as migalhas da mesa para os cachorrinhos e os gatos não é amor nem justiça. … De que adiantaria
anunciar a Boa Nova aos ricos que só têm ouvidos moucos para as coisas do Reino? Os pobres sofrem, são injustiçados, carecem de amor. Deus sabe que eles têm ouvidos de ouvir. A Boa Nova lhes toca o coração amargurado. (J. Herculano Pires, O Reino, cap. 2.)
Ai daquele que pretender empobrecer os homens e empobrecer a Terra. … O Reino é rico, mas a riqueza do Reino é abundante e impessoal. O que faz a pobreza é a riqueza pessoal. Há um caruncho
da alma: o egoísmo. Esse caruncho destrói a maior riqueza do universo, que é o Espírito, quando o homem se julga dono pessoal dos frutos da terra. … Que são os bens, se não os frutos da Terra?
Maria previu, na sua intuição humana de mãe e na sua previsão divina de Espírito, a redistribuição dos frutos da Terra para que o amor e a justiça do Reino triunfem entre os homens. A árvore que
lança suas raízes ao solo e estende seus ramos aos ventos não dá frutos para este ou aquele, mas para todos. … Que direito tem um homem de cercar uma árvore ou mais árvores, de torná-las suas
escravas particulares, de arrebatar-lhes sistematicamente os frutos para transformá-los em riqueza pessoal? Os frutos devem saciar a fome dos famintos, alimentar as crianças e fortalecê-las para o
futuro. A riqueza dos frutos é para todos. A árvore é o gesto de Deus ensinando aos homens a eterna doação. Nada lhe pedem e ela tudo dá. … Os entesouradores pessoais organizam-se em associações, em
trustes, em gigantescos monopólios. Pegam os frutos das árvores, os frutos minerais das entranhas da terra, os frutos aquáticos dos rios e dos mares, sugam os lençóis subterrâneos e as misteriosas jazidas
que os séculos formaram, e de tudo isso fazem moedas ingênuas, doiradas ou prateadas, cintilantes de pureza, que transformam em instrumentos de suplício e de vício. Os entesouradores pessoais se
associam contra os pobres, dominam nações e povos, exploram multidões e se consideram benfeitores da humanidade. Graças ao poder do dinheiro acumulado, o ingênuo e puro dinheiro que leva
saúde ao doente e alimento ao faminto, mas que em suas mãos se transforma em lâminas do punhal assassino, derrubam governos, subvertem regimes, tripudiam sobre o direito das gentes. Mas um
dia alguém vem demandar-lhes a alma néscia e apagar-lhes das gerações a odiosa memória, o exemplo corruptor. (J. Herculano Pires, O Reino, cap. 3.)
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Conforme a doutrina, importa guardar esta ideia: Não estamos autorizados a reproduzir a injustiça humana a pretexto de realizar justiça divina!A transformação social, para extinguir as causas da pobreza, eliminando a “riqueza pessoal” e prescrevendo o bem de todos, é um imperativo espírita. Trata-se, na prática, de superar a opressão capitalista e realizar, enfim, a emancipação socialista.
Luiz Gustavo O. dos Santos
Brasília-DF, 26 de maio de 2024.
PS: Sobre isso, indico ainda o excelente artigo da Revista Espírita de 1877, escrito por J. Camille Chaigneau, chamado “Progresso social e reencarnação”, que traduzi e incluí como Apêndice no livro da Anna Blackwell, O efeito provável do espiritualismo sobre a condição social, moral e religiosa da sociedade.