Uma religião sem graça


UMA RELIGIÃO SEM GRAÇA

O filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé escreveu, certa feita, em algum lugar, que o “espiritismo é uma religião sem graça”.

De fato, as religiões, em geral, são cheias de graça. Numas, pastores falam diretamente com Deus, promovem sessões de curas milagrosas e se dizem capazes de tornar as pessoas mais ricas. Noutras a graça está nos ritos belíssimos, às vezes em línguas que não compreendemos e em misteriosas liturgias, preservadas de tempos que não são nossos.

Enquanto isso, convenhamos, os templos e práticas da “religião espírita” não atendem ao pragmatismo que os crentes esperam de seus cultos.

O tema me veio à mente com a divulgação do censo das religiões (2022). O catolicismo, mesmo perdendo fieis (8,4 pontos percentuais a menos do que no censo anterior), segue sendo a da maioria dos brasileiros: 57,6% deles se declararam católicos. Já o segmento evangélico, confirmando tendência das últimas décadas, teve um crescimento de 5,2 p.p. e atingiu o percentual de 26,9%.

E O ESPIRITISMO?

Na planilha dos censores e na cabeça da maioria dos espíritas brasileiros, o espiritismo é uma religião. Quando, pois, o entrevistador do IBGE indagou, no Censo de 2022, qual era a religião de seu interlocutor, este, se espírita, deve ter respondido: o espiritismo.

O resultado, como já se sabe, foi menor do que a maioria dos espíritas esperava. O percentual de brasileiros autodeclarados adeptos da “religião espírita” encolheu em 0,3 p.p. relativamente ao censo anterior. De 2,2% passou para 1,8% da população do país.

Dois outros resultados talvez ajudem a entender essa redução. Primeiro: a umbanda e o candomblé tiveram um aumento significativo, saindo de 0,3%, em 2010, para 1% em 2022. Segundo: o percentual dos que se dizem “sem religião”, seguindo tendência dos últimos censos, cresceu, chegando a 9,3% (1,3 p.p. a mais do que em 2010).

O PERFIL ESTÁ MUDANDO

Crenças marcadamente medianímicas e com rituais que as tornam, também, repletas da graça e da magia não encontradas no espiritismo, as chamadas religiões de matriz africana, bem que podem ter atraído uma parcela de “espíritas” sedentos da graça religiosa.

Mas há um outro fenômeno que talvez tenha dado causa ao declínio da “religião espírita”: o movimento espírita brasileiro, na última década, sofreu, e continua sofrendo, um processo de acelerada transformação. Esmaeceu-se acentuadamente seu perfil místico/religioso e se desenvolveu a consciência, entre muitos de seus seguidores, de que ele, na verdade, oferece conteúdos paradigmáticos capazes de dar origem a uma nova escola de pensamento, oferecendo uma revolucionária visão de Deus, de universo, de homem e de sociedade, incompatíveis com o dogmatismo religioso, mas não com a espiritualidade.

É cada vez maior o número de estudiosos, dos mais diferentes níveis culturais, que, adotando ou sedimentando antigas convicções espíritas, engrossam o segmento dos brasileiros que se declaram “sem religião”.

O estudo e o debate dos temas espíritas, provavelmente bem mais do que nos antigos templos da religião espírita, estão, pouco a pouco, migrando para grupos virtuais ou “coletivos espíritas”, sob uma perspectiva livre pensadora. Ocorrem também eventos presenciais de perfil marcadamente laico, e onde não mais se teme contrariar o espírito conservador do movimento federativo. Sedimenta-se um segmento que privilegia a ação renovadora e atualizadora da proposta científica, filosófica, ética e social do espiritismo.

REINVENTARMO-NOS é PRECISO

De fato, à religião não pode faltar a graça. Ela está, como assinalou Kardec, nos ritos, nos mistérios, nos poderes sacerdotais e suas liturgias. Não cabe ao espiritismo “enfeitar-se” com eles, disse seu fundador, sob pena de se descaracterizar.

É certo que, nesse sincretismo aqui feito com a religião, os templos espíritas adotaram sucedâneos como a água fluidificada, o passe ritualístico, as preces formais… Práticas que ainda preservam alguma graça herdada da religião. Mas nada disso pode se comparar à graciosa presença de um orixá, num terreiro, à suntuosidade de uma missa entoada em canto gregoriano ou à dramática expulsão de demônios, presidida por um pastor tomado do Espírito Santo.

Tem razão Pondé. O espiritismo, como religião, não tem graça nenhuma. Será preciso que o IBGE e os próprios espíritas, um dia, se convençam disso. Então, livre da classificação de religião, o espiritismo poderá melhor ser avaliado como uma força propulsora do progresso, a partir da generosa ideia dos ESPÍRITOS e de sua relação com o mundo material. Afinal, é nele que estamos e queremos contribuir eficazmente para sua melhora.

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