Vivemos em uma era marcada por episódios de violência extrema e intolerância. Policiais se matam em Caxias, torcedores são brutalmente violentados por torcidas organizadas, enquanto a extrema-direita cresce no Ocidente. No Equador, gangues desmantelam a ordem social; na África, guerras civis persistem. Gaza está destruída, e Trump ameaça se apossar de territórios e promover limpeza étnica. A PM de São Paulo se transformou em uma máquina de matar, fenômeno que não se restringe ao estado, mas reflete uma política de segurança pública militarizada e repressiva em todo o Brasil. Além disso, a perversidade socioeconômica do neoliberalismo, o racismo, o patriarcado, a misoginia e o ódio contra imigrantes e pessoas LGBTQIA+ perpetuam um clima de hostilidade. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é um dos países com as maiores taxas de homicídios do mundo (mesmo caindo 3,4% em 2023!), com cerca de 47 mil assassinatos por ano, sendo que a maioria das vítimas são jovens negros e periféricos. Tais fatos evidenciam que a violência não é um desvio ou aberração, mas sim um mecanismo estrutural de dominação dentro do capitalismo contemporâneo.
Sigmund Freud (1856–1939) elaborou a noção de pulsão de morte, que pode nos ajudar a compreender, em parte, essa barbárie. Segundo ele, há uma força pulsional destrutiva inerente à psique humana que, quando não sublimada por Eros – a pulsão de vida –, pode se manifestar de formas devastadoras, tanto no plano individual quanto no coletivo. A resistência diante do conceito de pulsão de morte, inclusive dentro da própria psicanálise, reside na dificuldade de aceitar que o gozo destrutivo – esse prazer perverso que surge do impulso de autoaniquilação – é parte integrante de nossa condição humana.
Mas por que negamos o mal que habita em nós?
Talvez porque encarar essa sombra terrível e universal significaria assumir uma responsabilidade imensa pela transformação de nossas próprias relações e estruturas sociais. Negar essa realidade da agressividade humana nos permite viver em uma ilusão confortável, mesmo que temporária. A negação do mal em nós também é uma forma de individualizar os problemas, criar bodes expiatórios e alimentar o discurso de que somos todos “civilizados”, enquanto o verdadeiro problema é o outro. Assim, a solução parece simples: basta eliminar o inimigo para sermos felizes. Na verdade, o buraco é muito mais complexo e tem dimensões psicossociais que muitos preferem não ver.
Do ponto de vista marxista, a violência não pode ser compreendida apenas no nível psíquico individual, mas deve ser analisada como parte da dinâmica estrutural do capital. Karl Marx (1818–1883) já alertava sobre a violência como motor da acumulação primitiva, e Frantz Fanon (1925–1961) aprofundou essa discussão ao demonstrar como o colonialismo naturalizou a brutalidade como ferramenta de controle. Mais recentemente, Achille Mbembe descreve a necropolítica, ou seja, a forma como os Estados modernos e o capitalismo neoliberal decidem quem deve viver e quem pode ser descartado, as vidas que são enlutáveis e as dispensáveis (como nos alerta Judith Butler), transformando certas populações em vidas matáveis. O genocídio da juventude negra no Brasil e o extermínio palestino são expressões contemporâneas desse mecanismo.
E como Eros pode nos ajudar a sair desse ciclo?
Eros representa a força criadora, o impulso de socialização, de amor e de construção de vínculos que se contrapõe à pulsão de morte e à desagregação, manifestadas em uma sociedade líquida e marcada pelo cansaço, como diria Byung-Chul Han. A multidão de explorados e oprimidos precisa criar caminhos para transformar a violência pandêmica e a destruição necropolítica em processos de construção, de solidariedade e de forja de vínculos fraternos. Isso não significa acreditar em uma ingênua sociedade perfeita, mas reconhecer que a luta para integrar os opostos – a violência e o amor, a destruição e a criação – é o caminho para uma transformação mais consequente e realista, ampliando o bem-estar para a maioria do povo e não apenas para o 1% mais rico.
No entanto, essa mudança vai na contramão das estruturas socioeconômicas e culturais do capitalismo. Fere a razão neoliberal hegemônica e bloqueia os interesses da hidra financeira global, cujo modelo econômico é baseado no endividamento, na exploração e na degradação ambiental. Segundo Thomas Piketty, a desigualdade global aumentou de forma alarmante nas últimas décadas, com o 1% mais rico controlando cerca de 38% da riqueza mundial. Portanto, não será fácil; haverá resistência e conflitos severos.
Somente a prática do amor e do cuidado, tanto nas relações interpessoais quanto nas estruturas sociais, pode abrir espaço para que a força de Eros contraponha, já no campo micropolítico, a barbárie capitalista. Isso não significa eliminar o mal, a agressividade – algo impossível –, mas canalizá-lo para formas mais conscientes, criativas, prazerosas e construtivas de existência. Em última análise, a tarefa é reconhecer e trabalhar com nossa ambiguidade, transformando a angústia, o pânico diante do mundo cão e a agressividade ativa-reativa em força para a mudança de si mesmo e do mundo.
Somente assim poderemos construir uma outra sociabilidade, onde a democracia, a justiça, a igualdade e a solidariedade sejam os alicerces da convivência coletiva. Sem essa mudança estrutural, continuaremos a mergulhar fundo no que há de mais monstruoso nos escombros da psique humana, expresso em estruturas sociais absolutamente perversas e brutais. E não sei por quanto tempo mais a humanidade poderá resistir sem ser varrida pelas forças vivas da natureza, seja pelo colapso climático, seja pelo aprofundamento da miséria e da violência sistêmica.
Mas quero crer que ainda há tempo para uma virada em direção à pulsão de vida. Eros pode – e deve – ser o guia de um outro mundo possível.
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