“Sócrates – Teodoro, meu caro, parece que não julgou mal tua natureza. É absolutamente de um filósofo este sentimento: espantar-se. A filosofia não tem outra origem”.
(Platão – Teeteto, 155 c 8.)
O uso disciplinado da especulação racional na tentativa de compreender a realidade que se manifesta aos homens surgiu no Séc. VI a.C. nas colônias gregas da Jônia, com a preocupação inicial centrada na busca de conhecimento sobre as leis e os componentes do mundo material e mensurável. Ao contrário dos pensadores que o antecederam, Sócrates (470-399 a.C.) dizia que existe matéria infinitamente mais digna da meditação dos filósofos; é o espírito do homem. O que é o homem e em que poderá tornar-se?
Como se pode ver, este é, também, o objeto privilegiado da reflexão espírita que, de maneira inteligente e com fundamentação factual responde a estas indagações, credenciando-se, assim, como um modo moderno e revolucionário de percepção do homem e do mundo.
Segundo Platão e Aristóteles, a experiência que, segundo eles, dá origem ao pensar filosófico é aquilo que os gregos chamavam “thauma”, isto é, espanto, admiração, perplexidade. A filosofia começa, pois, quando algo desperta nossa admiração, espanta-nos, interroga-nos insistentemente, exige uma explicação.
O espanto e perplexidade provocados pelo fenômeno mediúnico na mente sensível e disciplinada de Allan Kardec, exigindo interpretação racional, deram nascimento à filosofia espírita, cuja identidade o filósofo J. Herculano Pires busca demonstrar na introdução de sua tradução de O Livro dos Espíritos, através de lúcidas considerações, algumas das quais, de maneira livre, apresentamos a seguir.
Quando do surgimento do Espiritismo, escreve H. Pires, a dicotomia mítico-teológica que nos apresentava o mundo dividido entre o natural e o sobrenatural, foi dialeticamente superada. O sobrenatural, afirma o Espiritismo, é apenas o natural não conhecido, não explicado e as leis de Deus não são somente as leis morais mas também as leis físicas, e aquelas não são mais do que a sequência evolutiva destas, uma vez que tudo se encadeia no universo.
O “Livro dos Espíritos” não é apenas a pedra fundamental, o marco inicial da nova codificação, mas também seu próprio delineamento, seu núcleo central e ao mesmo tempo o arcabouço geral da doutrina.
Observa-nos que O Livro dos Espíritos começa pela metafísica, passando depois à cosmologia, à psicologia, aos problemas propriamente espíritas da origem e da natureza do espírito e suas ligações com o corpo, bem como os da vida após a morte, para chegar, com as leis morais, à sociologia e à ética, e concluir, no livro IV, com as considerações de ordem teológicas sobre as penas e gozos futuros e a intervenção de Deus na vida humana. Todo um vasto sistema, sem exigências opressoras, numa estrutura livre e dinâmica.
As demais obras de Kardec partem do seu conteúdo, refletindo sua extraordinária unidade. O Livro dos Espíritos é o arcabouço filosófico do Espiritismo. É o seu tratado filosófico. Ainda que não tenha sido elaborado em linguagem técnica e nem observe as minúcias da exposição filosófica, revela todo um complexo e amplo sistema de filosofia. O Livro dos Espíritos revela-nos não um filósofo, mas um educador e pedagogo que era Kardec. Daí prevalecer a didática e não a filosofia, na elaboração do livro, destacando-se aí a utilização de um método clássico da tradição filosófica, o diálogo.
Com razão Kardec afirma no cap. VI da conclusão deste livro: “Sua força está na sua filosofia, no apelo que faz à razão e ao bom senso”.
Este é o processo dialético do Espiritismo, que em vez de dar ênfase à contradição em si, à luta dos opostos, prefere dá-la à harmonia, à fusão dos contrários, para uma nova criação.
Assim, a concepção espírita ou a cosmovisão espírita não é dogmático-fideista, mas crítico-fideista, isto é, fé raciocinada.
O Livro dos Espíritos é o primeiro compêndio de uma nova escola filosófica. Sua tese fundamental é a evolução, e a natureza desta é dialética, conclui Herculano Pires.
Já o extraordinário Manuel S. Porteiro (1881/1936) em seu livro Espiritismo Dialético, afirma que o Espiritismo é ciência filosófica e, ao mesmo tempo filosofia científica. Ciência filosófica, porque deduz conclusões dos fatos que observa. Filosofia científica, porque se apoia nos fatos da psicologia, da metapsíquica e da ciência em geral. É também ciência integral e progressiva porque, se referindo ao espírito humano, à sua evolução, ao seu destino, às suas relações com a humanidade e com o universo, integra todos os conhecimentos. Sua filosofia é eminentemente dialética; sua concepção da vida, dinâmica e seu conceito de história, genético.
Sir Oliver Lodge, o grande físico inglês, destacando a natureza revolucionária do pensamento espírita, considerou o Espiritismo, no seu livro “A imortalidade pessoal”, como “uma nova revolução copérnica”.
A natureza sintética, revolucionária e livre pensadora da filosofia espírita é evidente. Essa concepção inovadora afeta drasticamente a forma pela qual o homem e o mundo são percebidos e tem óbvias implicações morais, já que sugere, racionalmente, um comportamento pessoal, familiar e social orientado para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna.