O mundo medieval repousava em paz, embalado pela convicção da vizinhança entre a terra e Deus e a constante solicitude da divindade para com os homens quando uma voz soou na Polônia dizendo que o nosso planeta, almofada de repouso para os pés de Deus e ponto escolhido para sua peregrinação redentora, não passava de pequenino satélite de um pequenino sol. Rompendo com a concepção geocêntrica e tirando a Terra de sua posição privilegiada no universo a obra revolucionária do monge Nicolau Copérnico (1473-1543) se tornou um dos mais importantes marcos na caminhada do homem em busca do domínio da natureza. Com esta obra começou a modernidade. Começa o secularismo. Os deuses que até então haviam cuidado dos homens, percebendo sua maioridade, começaram a desaparecer, deixando-os entregues aos seus próprios recursos.
A partir daí, a história precipita-se. O homem tem pressa. Crescentemente liberto da tradição, indiferente aos dogmas, reorienta seu pensamento. Não mais a simples meditação contemplativa ou a oca especulação acadêmica e sim o inquérito dedutivo das leis naturais. O homem, impaciente, quer construir seu paraíso aqui, na terra.
O primeiro filósofo a reconhecer como propósito da ciência o bem estar do homem, isto é, produzir, em última análise, descobertas que facilitassem sua vida, foi o insigne Francis Bacon (1561-1626), lorde chanceler da coroa britânica, arauto da ciência moderna que, na opinião do iluminista Denis Diderot foi o homem que, “numa época na qual era impossível escrever a história daquilo que os homens sabiam, traçou um mapa do que eles deveriam aprender”.
A exaltação baconiana da tecnologia é, mais tarde, compartilhada com entusiasmo pelo Conde de Saint-Simon, (Sansimonismo) e por Auguste Comte (positivismo) no século XIX.
E assim tem início a era tecnológica. Um racionalismo tecnicista vai a pouco e pouco superando a visão humanista tão duramente conquistada.
No nosso tempo a tecnologia é dominante, sobretudo nas “ilhas de civilização” do nosso planeta. O deus antropomórfico e seus sacerdotes ungidos que nos protegiam e orientavam estão sendo substituídos pelos novos deuses da tecnologia aos quais também nos entregamos, mesmo sem entendê-los. Continuamos assim alienados e dependentes do mistério e de seus novos sacerdotes, intérpretes de bulas e manuais escritos em linguagem estranha, hermética, só acessível a iniciados.
Diante de qualquer problema, só a eles se pode recorrer para exorcizar o mal, para nós, metafísico.
Mesmo nas áreas mais civilizadas do planeta a tecnologia é algo tão misterioso como a santíssima trindade. Usufruímos suas benesses, mas não dominamos seus princípios. Quanto mais benefícios nos oferecem, mais complexos e distantes do nosso entendimento se tornam.
É verdade que já na primeira metade do século passado começou a manifestar-se o que hoje se chama o problema da tecnologia, isto é, o problema que nasce das consequências que o desenvolvimento técnico do mundo moderno traz à vida individual e associativa do homem.
Os críticos da tecnologia, entre outros o escritor francês Albert Camus, identificam na máquina a causa direta ou indireta da decadência espiritual do homem. Segundo eles o mundo das máquinas é um mundo sem alma, nivelador, mortificante em que os valores do espírito foram substituídos pelo culto dos valores instrumentais e utilitários.
Estas acusações ou denúncias, mesmo sendo exageradas, põem a nu um problema efetivo que é o da acomodação do homem ao novo ambiente natural e humano produzido pela técnica.
A surpreendente expansão do fundamentalismo religioso que, na sua vertente cristã, tem base e inspiração na nação mais rica, industrializada e poderosa que o mundo conheceu, precisa ser encarada como um desafio à nossa capacidade de compreender o homem e suas motivações.
Não podendo dominar nem compreender os novos deuses que lhes são impostos, parcelas imensas da população buscam refúgio e segurança nos mais recônditos e escuros espaços de ideias mais antigas, mais familiares. Numa tentativa para ressuscitar ou manter vivos seus velhos e moribundos deuses que, bem ou mal, ofereciam identidade e alguma segurança, erguem muros e cavam trincheiras isolando-se em suas frágeis certezas.
Esta é, talvez, a gênese deste recuo, deste retorno a modelos que pareciam superados.
Se o irracionalismo espiritualista representado pelo fundamentalismo religioso é uma resposta à desumanização provocada pelo racionalismo tecnicista, uma síntese dialética se faz necessária e, talvez, urgente para superar o conflito, conciliando os aspectos mais nobres do espiritualismo e da tecnologia.
Ora, esta síntese que, para compor a tríade dialética, poderíamos denominar racionalismo espiritualista, já existia desde a metade do século XIX, com o humanismo espiritocêntrico proposto pelo Espiritismo. Kardec foi contemporâneo de Saint-Simon e Comte e, certamente, não era avesso ao progresso tecnológico. Por outro lado, pôde também vivenciar os problemas sociais, econômicos e políticos provocados pela revolução industrial, um pouco mais tardia na França. Seu gênio percebeu o conflito e desenhou um caminho para sua superação. O Espiritismo, na sua essência, é fortemente vocacionado para a conciliação dos saberes. Sua natureza sintética é evidente no permanente esforço do codificador para configurá-lo como um espaço onde fosse possível superar dialeticamente os paralisantes conflitos entre fé e razão e ciência e religião.
Onde teremos errado na compreensão e divulgação do pensamento espírita para que, um século e meio depois de seu lançamento, esta oportuna e inteligente síntese conceptual continuasse ignorada e, portanto, sem poder conquistar o que Kardec chamava, na conclusão do Livro dos Espíritos, “direito de cidadania entre os conhecimentos humanos”?