O Salto de Kierkegaard

Um alpinista solitário buscando fugir, durante a noite, de uma tempestade de neve na montanha que escalara, perde o equilíbrio, precipita-se no abismo e é, então, salvo pela corda de segurança que ancorara na rocha gelada. Suspenso pela corda, em completa escuridão, sem condição de retornar e desconhecendo a profundidade do abismo, deixou-se ali ficar, em angustiosa espera, pois sabia que o frio intenso o mataria em poucas horas e que a única alternativa para esta morte lenta seria desvencilhar-se da corda e saltar para uma morte rápida.

Dominado pelo pavor, naquela vigília que parecia não ter fim, ouve uma voz forte que, superando o medonho ruído da nevasca, ressoa autoritária na sua mente determinando: – Salta, salta e te salvarás.

Várias horas depois, quando a luz do dia retornou e a tempestade amainou, uma equipe de resgate encontrou o trágico personagem já sem vida, ainda agarrado à sua corda e com os pés suspensos no ar a somente cinquenta centímetros do solo firme.

A fé o convidava ao salto salvador mas, naqueles momentos de angústia e solidão, prevaleceram os argumentos da razão. Esta lhe acenava com a possibilidade, remota é verdade, de sobreviver ao frio e ser resgatado.

Este episódio emblemático, cuja origem não recordo, nos coloca diante do problema da fé que, na visão do pensador dinamarquês Soren A. Kierkegaard (1813-1855) é, definitivamente, um modo de existir que nos põe em relação com o absurdo. Para ele o acesso à verdade suprema depende da crença no absurdo, naquilo que Paulo de Tarso chamou de “loucura”. Por isso devemos dizer “creio porque é absurdo“.

A angústia que acompanha a fé estaria ilustrada, no entender de Kierkegaard, no episódio bíblico no qual Deus pede a Abraão o sacrifício de seu único filho Isaac para demonstrar a sua fé, o que, segundo a ética dos homens, é absurdo e desumano. Abraão não hesitou: aceitando o absurdo da exigência divina saltou da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego.  Para este pensador, a fé cristã é superior à ciência porquê indica a certeza mais alta, uma certeza que se refere ao paradoxo, portanto ao inverossímil.  A fé representa, assim, um salto no escuro e, sendo a crença inseparável da angústia, para Kierkegaard o temor de Deus é inseparável do tremor.

Os episódios que ilustram esta reflexão podem ser apreciados de duas maneiras. A visão fideista, desprezando a razão e privilegiando a fé no conhecimento das verdades, certamente aprovará a obediência de Abraão e lamentará a desobediência do alpinista. Já uma visão racionalista, livre pensadora e até mesmo o nosso conhecido “senso comum”, considerará perfeitamente razoável a resistência do infeliz alpinista ao comando daquela voz, ao mesmo tempo em que se horrorizará com a absurda e desumana ordem dada a Abraão que, por isso, deveria ignorá-la.

O confronto entre estas duas visões, que representam momentos distintos na história do pensamento humano, é evidente.  A visão medieval, teocêntrica, em que a fé é, sobretudo, submissão, obediência, é desafiada, a partir da renascença, pelo racionalismo humanista. O homem, adolescente rebelde, propõe a Deus um novo contrato em que a parceria substitua a obediência cega, pois ele já “não aceita mais crer de olhos fechados pois quer saber de olhos abertos”. Descobre-se, assim, como legítimo filho de Adão que renunciou ao paraíso pela liberdade de escolher, de errar, de crescer.

A partir deste momento, a necessidade de uma síntese se torna crescentemente imperiosa. Para isto, porém, seria necessária uma mudança na forma de ver o fenômeno, adotando um raciocínio dialético em substituição ao lógico.

O Espiritismo surge no momento histórico em que esta síntese se torna possível.             O fideismo tinha muito poucos defensores e, por outro lado, era bem menor a paixão pela razão, como único meio de se chegar ao conhecimento da realidade.

O jornalista Luiz Signates em um excelente e fundamentado artigo nos fala da conciliação, no Espiritismo, desses conceitos antagônicos que se conjugam na explicação da realidade, resultando numa fé aberta, dialogal que forma um par dialético inseparável com a razão.

A natureza sintética do Espiritismo, tão bem destacada por Leon Denis, torna-se evidente no conceito de “fé raciocinada” que Kardec incorporou ao pensamento espírita.

A visão dinâmica e livre pensadora oferecida pelo Espiritismo nos convida enfaticamente a superar dialeticamente o conflito entre a postura de submissão alienante do fideismo e a arrogância racionalista, com aquilo que José Herculano Pires chamou de fideismo-crítico, ou seja, a nossa fé raciocinada.

Analisando o aparente paradoxo desta expressão na obra A Revolução da Esperança, o psicanalista Erich Fromm diz que a fé é irracional quando é submissão a determinada coisa que se aceita como verdadeira independentemente de sê-lo ou não. O elemento essencial desta fé é o seu caráter passivo. Já a fé racional refere-se ao conhecimento do real que ainda não nasceu; baseia-se na capacidade de conhecimento e compreensão que penetra a superfície e vê o âmago. A fé racional, continua ele, não é previsão do futuro; é a visão do presente num estado de gravidez; é a certeza sobre a realidade da possibilidade.

Sintetizando o modo pelo qual o Espiritismo aborda o problema da fé, poderíamos dizer, parafraseando Herbert Spencer, que “existe uma alma de razão nas coisas da fé e uma alma de fé nas coisas da razão”.

O Paradigma Ignorado

Os antigos deuses envelheceram ou morreram e outros ainda não nasceram.” (Emile Durkheim)

O processo civilizatório a que estamos submetidos transcorre como se nosso planeta fosse um gigantesco e dinâmico palco com cenários em permanente mutação e atores em rodízio constante.

Este imenso espetáculo é dirigido por “matrizes ideológicas” ou paradigmas que, num dado momento e cultura, tornam-se hegemônicos e, portanto, eleitos para administrar o processo até que, esgotada sua virilidade, senilizados, são substituídos por novos paradigmas.

Convém reconhecer, todavia, que o envelhecimento ou até mesmo a morte dos velhos deuses não é facilmente reconhecida. Sendo muito penosa a orfandade, é preferível um deus mumificado a deus nenhum, prolongando, assim, a crise de referências ao mesmo tempo em que os candidatos à sucessão são submetidos aos testes necessários.

A crise existencial do nosso tempo tem como uma das principais causas o esgotamento dos modelos conceptuais ainda vigentes, crescentemente incapazes de oferecer segurança e identidade.

O psicanalista Hélio Pelegrini afirmou em um artigo que a angústia metafísica que nos aflige clama por uma filosofia pública sobre o significado e objetivo da vida, capaz de orientar toda a atividade humana, isto é, uma visão de homem e de mundo que possa ser racionalmente universalizada.

Os relatos bíblicos, síntese conceptual daqueles tempos e cultura, nos falam, essencialmente, de um contrato estabelecido entre o Criador e as criaturas a partir do momento em que estas conquistam a racionalidade, isto é, a liberdade de desobedecer, que inaugura a história humana. Este contrato é reformável na medida em que precisa ajustar-se aos novos níveis de consciência e liberdade conquistados pelo homem. A iniciativa, porém, como a história nos ensina, cabe ao homem.

Quando os valores tradicionais começam a perder significado e eficácia, um novo contrato, um novo conjunto de valores deve ser concebido.

Atendendo a esta determinação histórica, Kardec, com extraordinária lucidez, identifica sinais de esgotamento do paradigma vigente e lidera uma revolução conceptual de base racional e humanista que, superando o organocentrismo iluminista propõe uma visão espiritocêntrica, isto é, que considera a dimensão extrafísica ou espiritual como fundamental, afetando, drasticamente, a forma pela qual o homem, o mundo e a história são percebidos.

A natureza sintética do modelo conceptual Kardequiano é evidente. Como uma flor tardia da primavera iluminista o Espiritismo surge como uma esperança de renovação capaz de oferecer ao homem a segurança e a identidade perdidas, equipando-o, assim, para avançar, confiante, mais uma etapa no processo evolutivo.

Quase um século e meio depois de seu surgimento, o Espiritismo, naquilo que o faz singular, dinâmico, revolucionário e universal é desconhecido pela maioria esmagadora dos próprios espíritas que, incapazes de compreender o alcance e a profundidade da monumental proposta de Kardec, insistem, ingenuamente, em interpretá-la à luz dos paradigmas agonizantes ou mumificados que teimam em nos influenciar, reduzindo-a, assim, a uma mera seita religiosa.

Significativamente, foi exatamente esta a interpretação do Abade François Chesnel em artigos publicados no jornal L’Univers de Paris em abril de 1859 e tão veementemente contestada pelo fundador do Espiritismo, conforme ficou registrado na “Revue Spirite” de maio e julho daquele ano.

Como se vê, o padre Chesnel fez escola.

O corte de Bachelard

Para muitos, ciência, em oposição à opinião, é todo conhecimento que inclua, em qualquer forma ou medida uma garantia da própria validade, isto é, é um conhecimento demonstrativo.

O senso comum, por sua vez, é um conjunto de informações não sistematizadas que aprendemos por processos formais, informais e, às vezes, inconscientes. Essas informações são, no mais das vezes, fragmentárias e podem incluir fatos históricos, doutrinas religiosas, lendas, princípios ideológicos, informações científicas popularizadas bem como a experiência pessoal acumulada. Quando emitimos opiniões, lançamos mão desse estoque de coisas da maneira que nos parece mais apropriada para justificar nossos argumentos.

A ciência diferencia-se, pois, do conhecimento vulgar ou senso comum ao acrescentar critério metodológico, rigor e maior capacidade preditiva a este tipo de conhecimento ainda que o mesmo, de modo trivial e assistemático também descubra fatos, formule explicações e desenvolva teorias. Foi o senso comum apoiado em “dados” que criou as teorias da terra plana, da terra centro estático do Universo, dos seres vivos criados instantaneamente e imutáveis desde então, do homem sem ligação de origem com os demais seres vivos, etc.  A ciência mudou tudo isto apesar de os dados não terem mudado e sim sua interpretação. Se as coisas fossem como parecem ser, não seria preciso a ciência para tirar do que está escondido a interpretação correta dos fatos.

Quando o professor Rivail se deparou com os fenômenos que deram origem ao Espiritismo, sua natureza inquieta, perquiridora, percebeu logo a necessidade de examiná-los com critérios metodológicos ajustados às características insólitas dos mesmos, não se submetendo, assim, à apreciação superficial sugerida pelo senso comum.

Graças a este olhar diferente, inteligente, que se alongou além das aparências, foi possível extrair daqueles fatos as consequências filosóficas e morais que iluminam nosso caminho, mudando drasticamente a forma pela qual o homem e o mundo são percebidos. Os fatos, porém, não eram novos, sempre existiram. Eram, no entanto, interpretados pelo conhecimento vulgar como manifestações sobrenaturais, divinas ou demoníacas sem nenhuma relação racional com as supostas causas a eles associadas.

Ao interpretar racionalmente aqueles fatos, ou seja, o fenômeno mediúnico, o Professor Rivail provocou aquilo que o filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) chamou de “corte epistemológico”, isto é, uma revolução conceptual, uma ruptura com o conhecimento, superficial e ingênuo existente até então sobre o assunto. As consequências desta revolução ainda não puderam ser bem avaliadas.

Essa posição “descontinuista” do francês Bachelard não é de aceitação geral. Os pensadores britânicos Bertrand Russel (1872-1970) e Karl Popper (1902-1994) admitiam a existência de uma continuidade entre ciência e senso comum, no sentido de que a primeira flua do segundo, apenas possuindo uma maior sofisticação, ou seja, a ciência é somente senso comum ou conhecimento vulgar, esclarecido, educado.

Em qualquer dessas visões, porém, poderíamos dizer que, sendo uma filosofia espiritualista e tendo uma evidente interface com a religião (infelizmente hipertrofiada entre nós), o Espiritismo está para as religiões assim como a ciência está para o conhecimento vulgar.  Em ambos os casos trata-se de esferas cognitivas diferentes, embora possam se referir à mesma realidade.

O Espiritismo apresenta-se, pois, no panorama da cultura humana como um novo modelo conceptual de base racional, escoimado do sobrenatural, da superstição, da idolatria, sem abdicar, entretanto de um tipo particular de especulação que avança além da ciência, completando-a prematuramente na tentativa de explicar os enigmas da vida. É uma forma totalmente nova de “pensar a realidade a partir da exigência de que a vida faça sentido” (Rubens Alves), é uma nova e viril teoria destinada a “fazer viver e fazer agir” (E. Durkheim).

Moral e Razão

“É preciso institucionalizar a solidariedade, isto é, criar uma ética da solidariedade”.
Helio Pelegrino – Psiquiatra

Para Sócrates, o maior dos problemas da filosofia seria o encontro de uma ética natural que tomasse o posto da ética sobrenatural que estava sendo destruída pela filosofia. Se fosse possível construir um sistema de moralidade independente de credos teológicos, estes credos poderiam desaparecer sem prejuízo para o cimento que faz de simples indivíduos cidadãos de uma comunidade.

O grande desafio humano, em todas as épocas, tem sido conter em níveis suportáveis as manifestações egoísticas que buscam obstaculizar o processo civilizador construído, penosamente, pela ação altruísta.

Os códigos morais de todas as culturas buscaram na autoridade divina respaldo para a imposição de modelos comportamentais que, controlando os impulsos egocêntricos, tornassem possível a vida comunitária.

Se é verdade que esta pedagogia impositiva e paternalista foi eficiente para nos arrancar da barbárie e construir a civilização que conhecemos, mostra-se crescentemente ineficaz nos dias atuais. O filósofo e pedagogo americano John Dewey declara no seu livro “A Common Fayth” que o homem não tem usado de modo amplo os poderes que lhe são inerentes para melhorar as próprias condições de vida, porque tem esperado muito do auxílio divino e da natureza.

Diante do enfraquecimento da moral de fundamento religioso, já que a determinação divina é cada vez menos respeitada pela humanidade, histórica e mitologicamente desobediente, buscamos ainda agora, uma moral de base racional produto de um conhecimento mais amplo da vida e seu significado. O grande problema da ética como estudo racional da moralidade se resume em saber se é desejável ser bom e, em caso afirmativo, como pode ser o homem persuadido a ser bom.

Seria o Espiritismo uma resposta inteligente e oportuna a estas questões?  Vários elementos que estruturam o pensamento espírita sugerem que sim.

É verdade que não existe uma moral Espírita e sim uma postura moral que decorre naturalmente do conhecimento e da aceitação dos fundamentos essenciais do Espiritismo. A ideia da evolução e, sobretudo, o princípio da reencarnação, a ela subordinada, que determina a troca de papéis nas diversas experiências físicas, oferecem substrato racional riquíssimo para a adoção consciente de um modelo comportamental fundamentado na tolerância racial e social, na solidariedade enfim.

A percepção espírita de uma “lei de causa e efeito”, disciplinadora da evolução no plano físico e no plano moral, torna o homem responsável pelos seus atos e, também, arquiteto do seu destino. Esta visão marcadamente humanista foi também compartilhada pelo pai da Psicanálise, Sigmund Freud, a quem se atribui a afirmação de que “o homem realmente esclarecido é espontaneamente moral, sem precisar temer o castigo divino.”

 

Na visão Espírita a sociabilidade é uma das leis naturais e o problema moral, isto é, o problema de assegurar a dignidade humana sem recorrer a fábulas ou à força seria de todo insolúvel se a moralidade estivesse em completa oposição à natureza.

No início do século XVII o notável Francis Bacon nos oferece uma interessante teoria de moral natural que só pode ser corroborada depois do advento de Charles Darwin que, no cap. IV da “Descendência do Homem,” lançou os alicerces de um código moral em que os credos teológicos eram substituídos pelas demonstrações da biologia. Bacon estava certo; a teoria evolucionista demonstrava que o homem é por natureza social, porque a vida social é anterior à vida do homem e a humanidade já surgiu com a sociabilidade no sangue.

 

Ao contrário do que dizem os teólogos bíblicos, o homem foi “bem feito.” O humanismo espiritocêntrico proposto pelo Espiritismo, independentemente de razões antropológicas e históricas, nos convida a crer no homem, sobretudo, por ser o homem a melhor e mais perfeita obra de Deus que conhecemos e, portanto, crer no homem é crer em Deus.

O conceito filosófico de imanência como um atributo de Deus sugere que a ação divina se manifesta na intimidade do homem na medida em que os desafios da convivência se tornam imperativos exigindo soluções inteligentes. Neste processo ele se torna, naturalmente, mais atento, mais sensível à presença divina que convida ao amor.

 

Como se vê, na medida em que dispusermos de robusta filosofia de vida e  o espírito de exame sobrepujar, enfim, o espírito de aceitação,  poderemos fazer no campo moral o mesmo tipo de seleção que já aprendemos a fazer no da alimentação. Pela experiência e pelo conhecimento racional das consequências em todos os níveis, descobriremos a conveniência humana do bem, criando assim condições para a institucionalização de uma ética natural capaz de substituir as sanções sobrenaturais, como sonhava Sócrates.

 

É interessante notar que estas reflexões, antes de nos afastarem da ideia de Deus, marcam uma significativa mudança na compreensão humana do mesmo que, deixando de ser mero síndico a quem apelamos para solução de conflitos nas nossas relações condominiais, transforma-se no legislador que concebe as grandes leis da convivência para as quais não existe apelação.

Espanto e Reflexão

“Sócrates – Teodoro, meu caro, parece que não julgou mal tua natureza. É absolutamente de um filósofo este sentimento: espantar-se. A filosofia não tem outra origem”.
(Platão – Teeteto, 155 c 8.)

O uso disciplinado da especulação racional na tentativa de compreender a realidade que se manifesta aos homens surgiu no Séc. VI a.C. nas colônias gregas da Jônia, com a preocupação inicial centrada na busca de conhecimento sobre as leis e os componentes do mundo material e mensurável. Ao contrário dos pensadores que o antecederam, Sócrates (470-399 a.C.) dizia que existe matéria infinitamente mais digna da meditação dos filósofos; é o espírito do homem.  O que é o homem e em que poderá tornar-se?

Como se pode ver, este é, também, o objeto privilegiado da reflexão espírita que, de maneira inteligente e com fundamentação factual responde a estas indagações, credenciando-se, assim, como um modo moderno e revolucionário de percepção do homem e do mundo.

Segundo Platão e Aristóteles, a experiência que, segundo eles, dá origem ao pensar filosófico é aquilo que os gregos chamavam “thauma”, isto é, espanto, admiração, perplexidade. A filosofia começa, pois, quando algo desperta nossa admiração, espanta-nos, interroga-nos insistentemente, exige uma explicação.

O espanto e perplexidade provocados pelo fenômeno mediúnico na mente sensível e disciplinada de Allan Kardec, exigindo interpretação racional, deram nascimento à filosofia espírita, cuja identidade o filósofo J. Herculano Pires busca demonstrar na introdução de sua tradução de O Livro dos Espíritos, através de lúcidas considerações, algumas das quais, de maneira livre, apresentamos a seguir.

Quando do surgimento do Espiritismo, escreve H. Pires, a dicotomia mítico-teológica que nos apresentava o mundo dividido entre o natural e o sobrenatural, foi dialeticamente superada.  O sobrenatural, afirma o Espiritismo, é apenas o natural não conhecido, não explicado e as leis de Deus não são somente as leis morais mas também as leis físicas, e aquelas não são mais do que a sequência evolutiva destas, uma vez que tudo se encadeia no universo.

O “Livro dos Espíritos” não é apenas a pedra fundamental, o marco inicial da nova codificação, mas também seu próprio delineamento, seu núcleo central e ao mesmo tempo o arcabouço geral da doutrina.

Observa-nos que O Livro dos Espíritos começa pela metafísica, passando depois à cosmologia, à psicologia, aos problemas propriamente espíritas da origem e da natureza do espírito e suas ligações com o corpo, bem como os da vida após a morte, para chegar, com as leis morais, à sociologia e à ética, e concluir, no livro IV, com as considerações de ordem teológicas sobre as penas e gozos futuros e a intervenção de Deus na vida humana. Todo um vasto sistema, sem exigências opressoras, numa estrutura livre e dinâmica.

As demais obras de Kardec partem do seu conteúdo, refletindo sua extraordinária unidade. O Livro dos Espíritos é o arcabouço filosófico do Espiritismo. É o seu tratado filosófico. Ainda que não tenha sido elaborado em linguagem técnica e nem observe as minúcias da exposição filosófica, revela todo um complexo e amplo sistema de filosofia. O Livro dos Espíritos revela-nos não um filósofo, mas um educador e pedagogo que era Kardec. Daí prevalecer a didática e não a filosofia, na elaboração do livro, destacando-se aí a utilização de um método clássico da tradição filosófica, o diálogo.

Com razão Kardec afirma no cap. VI da conclusão deste livro: “Sua força está na sua filosofia, no apelo que faz à razão e ao bom senso”.

Este é o processo dialético do Espiritismo, que em vez de dar ênfase à contradição em si, à luta dos opostos, prefere dá-la à harmonia, à fusão dos contrários, para uma nova criação.

Assim, a concepção espírita ou a cosmovisão espírita não é dogmático-fideista, mas crítico-fideista, isto é, fé raciocinada

O Livro dos Espíritos é o primeiro compêndio de uma nova escola filosófica. Sua tese fundamental é a evolução, e a natureza desta é dialética, conclui Herculano Pires.

Já o extraordinário Manuel S. Porteiro (1881/1936) em seu livro Espiritismo Dialético, afirma que o Espiritismo é ciência filosófica e, ao mesmo tempo filosofia científica. Ciência filosófica, porque deduz conclusões dos fatos que observa. Filosofia científica, porque se apoia nos fatos da psicologia, da metapsíquica e da ciência em geral. É também ciência integral e progressiva porque, se referindo ao espírito humano, à sua evolução, ao seu destino, às suas relações com a humanidade e com o universo, integra todos os conhecimentos. Sua filosofia é eminentemente dialética; sua concepção da vida, dinâmica e seu conceito de história, genético.

Sir Oliver Lodge, o grande físico inglês, destacando a natureza revolucionária do pensamento espírita, considerou o Espiritismo, no seu livro “A imortalidade pessoal”, como “uma nova revolução copérnica”. 

A natureza sintética, revolucionária e livre pensadora da filosofia espírita é evidente. Essa concepção inovadora afeta drasticamente a forma pela qual o homem e o mundo são percebidos e tem óbvias implicações morais, já que sugere, racionalmente, um comportamento pessoal, familiar e social orientado para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna.

Conciliação de saberes

O mundo medieval repousava em paz, embalado pela convicção da vizinhança entre a terra e Deus e a constante solicitude da divindade para com os homens quando uma voz soou na Polônia dizendo que o nosso planeta, almofada de repouso para os pés de Deus e ponto escolhido para sua peregrinação redentora, não passava de pequenino satélite de um pequenino sol. Rompendo com a concepção geocêntrica e tirando a Terra de sua posição privilegiada no universo a obra revolucionária do monge Nicolau Copérnico (1473-1543) se tornou um dos mais importantes marcos na caminhada do homem em busca do domínio da natureza. Com esta obra começou a modernidade. Começa o secularismo. Os deuses que até então haviam cuidado dos homens, percebendo sua maioridade, começaram a desaparecer, deixando-os entregues aos seus próprios recursos.

A partir daí, a história precipita-se. O homem tem pressa. Crescentemente liberto da tradição, indiferente aos dogmas, reorienta seu pensamento. Não mais a simples meditação contemplativa ou a oca especulação acadêmica e sim o inquérito dedutivo das leis naturais. O homem, impaciente, quer construir seu paraíso aqui, na terra.

O primeiro filósofo a reconhecer como propósito da ciência o bem estar do homem, isto é, produzir, em última análise, descobertas que facilitassem sua vida, foi o insigne Francis Bacon (1561-1626), lorde chanceler da coroa britânica, arauto da ciência moderna que, na opinião do iluminista Denis Diderot foi o homem que, “numa época na qual era impossível escrever a história daquilo que os homens sabiam, traçou um mapa do que eles deveriam aprender”.

A exaltação baconiana da tecnologia é, mais tarde, compartilhada com entusiasmo pelo Conde de Saint-Simon, (Sansimonismo) e por Auguste Comte (positivismo) no século XIX.

E assim tem início a era tecnológica. Um racionalismo tecnicista vai a pouco e pouco superando a visão humanista tão duramente conquistada.

No nosso tempo a tecnologia é dominante, sobretudo nas “ilhas de civilização” do nosso planeta. O deus antropomórfico e seus sacerdotes ungidos que nos protegiam e orientavam estão sendo substituídos pelos novos deuses da tecnologia aos quais também nos entregamos, mesmo sem entendê-los.  Continuamos assim alienados e dependentes do mistério e de seus novos sacerdotes, intérpretes de bulas e manuais escritos em linguagem estranha, hermética, só acessível a iniciados.

Diante de qualquer problema, só a eles se pode recorrer para exorcizar o mal, para nós, metafísico.

Mesmo nas áreas mais civilizadas do planeta a tecnologia é algo tão misterioso como a santíssima trindade. Usufruímos suas benesses, mas não dominamos seus princípios. Quanto mais benefícios nos oferecem, mais complexos e distantes do nosso entendimento se tornam.

É verdade que já na primeira metade do século passado começou a manifestar-se o que hoje se chama o problema da tecnologia, isto é, o problema que nasce das consequências que o desenvolvimento técnico do mundo moderno traz à vida individual e associativa do homem.

Os críticos da tecnologia, entre outros o escritor francês Albert Camus, identificam na máquina a causa direta ou indireta da decadência espiritual do homem. Segundo eles o mundo das máquinas é um mundo sem alma, nivelador, mortificante em que os valores do espírito foram substituídos pelo culto dos valores instrumentais e utilitários.

Estas acusações ou denúncias, mesmo sendo exageradas, põem a nu um problema efetivo que é o da acomodação do homem ao novo ambiente natural e humano produzido pela técnica.

A surpreendente expansão do fundamentalismo religioso que, na sua vertente cristã, tem base e inspiração na nação mais rica, industrializada e poderosa que o mundo conheceu, precisa ser encarada como um desafio à nossa capacidade de compreender o homem e suas motivações.

Não podendo dominar nem compreender os novos deuses que lhes são impostos, parcelas imensas da população buscam refúgio e segurança nos mais recônditos e escuros espaços de ideias mais antigas, mais familiares. Numa tentativa para ressuscitar ou manter vivos seus velhos e moribundos deuses que, bem ou mal, ofereciam identidade e alguma segurança, erguem muros e cavam trincheiras isolando-se em suas frágeis certezas.

Esta é, talvez, a gênese deste recuo, deste retorno a modelos que pareciam superados.

Se o irracionalismo espiritualista representado pelo fundamentalismo religioso é uma resposta à desumanização provocada pelo racionalismo tecnicista, uma síntese dialética se faz necessária e, talvez, urgente para superar o conflito, conciliando os aspectos mais nobres do espiritualismo e da tecnologia.

Ora, esta síntese que, para compor a tríade dialética, poderíamos denominar racionalismo espiritualista, já existia desde a metade do século XIX, com o humanismo espiritocêntrico proposto pelo Espiritismo.  Kardec foi contemporâneo de Saint-Simon e Comte e, certamente, não era avesso ao progresso tecnológico. Por outro lado, pôde também vivenciar os problemas sociais, econômicos e políticos provocados pela revolução industrial, um pouco mais tardia na França. Seu gênio percebeu o conflito e desenhou um caminho para sua superação. O Espiritismo, na sua essência, é fortemente vocacionado para a conciliação dos saberes. Sua natureza sintética é evidente no permanente esforço do codificador para configurá-lo como um espaço onde fosse possível superar dialeticamente os paralisantes conflitos entre fé e razão e ciência e religião.

Onde teremos errado na compreensão e divulgação do pensamento espírita para que, um século e meio depois de seu lançamento, esta oportuna e inteligente síntese conceptual continuasse ignorada e, portanto, sem poder conquistar o que Kardec chamava, na conclusão do Livro dos Espíritos, “direito de cidadania entre os conhecimentos humanos”?

Atualizar ou esperar

Em sua obra “A Revolução da Esperança”, o psicanalista Erich Fromm cita uma intrigante história do livro “O Processo” de Franz Kafka.  Um homem chega à porta que conduz ao céu (a Lei) e pede ao porteiro que o deixe entrar.  Este lhe diz que não pode admiti-lo, no momento. Embora a porta que leva à Lei esteja aberta, o homem decide que é melhor esperar até ter permissão para entrar. Ele se senta e espera durante dias e anos. Finalmente ele está velho e próximo da morte.  Pela primeira vez, ele faz a pergunta: “Como é que durante todos esses anos, ninguém a não ser eu procurou entrar?”  O porteiro respondeu: “Ninguém a não ser você poderia ter permissão de cruzar esta porta, porquanto ela estava destinada a você. Agora vou fechá-la.”

Os burocratas têm a última palavra. Esta é a moral da história de Kafka; se eles dizem não, ele não pode entrar. Se tivesse tido mais do que essa esperança passiva, ele teria entrado, e sua coragem para ignorar os burocratas teria sido o ato libertador.

Muitos, diz Erich Fromm, são com o velho de Kafka. Eles esperam mas não lhes cabe agir segundo o impulso do coração e, enquanto os burocratas não lhes dão o sinal verde, eles prosseguem esperando.

Os mais bem informados opositores do processo que temos chamado de “atualização do espiritismo”, não negam a necessidade eventual dessa medida, enfaticamente recomendada por Kardec, e sim a competência dos humanos encarnados para realizá-la. Segundo eles, cabe exclusivamente aos chamados espíritos superiores, detentores dos direitos autorais do Espiritismo, qualquer iniciativa neste sentido.  De acordo com esta visão, a nós outros, encarnados, restaria aguardar passivamente alguns “sinais do céu” que nos autorizariam a receber deles os conteúdos atualizadores.

O paralelo é evidente. O processo idolátrico caracteriza-se especialmente pela submissão simbiótica e preocupação neurótica de alienar-se, esvaziar-se em benefício do ídolo, seja ele uma pessoa uma ideia ou uma instituição. No caso em exame fica clara a disposição idolátrica dos que recusam aos espíritos encarnados autoridade ou capacidade para administrar o necessário processo de atualização.

Não conseguimos encontrar na obra e no exemplo de Kardec nenhum amparo para esta estranha e imobilista posição.  Como estacionar, como interromper o caminho como se tivéssemos alcançado o inalcançável? Como ficar a espera da hipotética e discutível iniciativa de uma entidade virtual, indefinível que denominamos espíritos superiores?

Kardec era ação, iniciativa. A porta estava aberta e ele destemidamente a atravessou. Construiu o Espiritismo utilizando material já recolhido por outros pesquisadores e, a partir daí, interrogando direta e metodicamente vários espíritos.  Nunca se afirmou, porém, que as lúcidas e instigantes perguntas com as quais Kardec partejava o espiritismo nascente fossem ditadas ou sugeridas pelos espíritos o que, segundo me parece, atesta que a condução do processo pertencia a ele, Kardec, tendo os espíritos como assessores ou como “elementos de instrução”.  No que se refere à elaboração do Livro dos Espíritos, isto fica claro em “Obras Póstumas – 2ª Parte – Minha iniciação no Espiritismo” onde Kardec, depois de se dar conta das limitações individuais dos espíritos com os quais dialogava, afirma: “Incumbe ao observador formar o conjunto, coordenando, colecionando e conferindo, uns com os outros, documentos que tenha recolhido. Procedi com os espíritos como teria feito com os homens; considerei-os, desde o menor até ao maior, como elementos de instrução e não como reveladores predestinados.”

Mais adiante, no mesmo capítulo, referindo-se ao processo de revisão dos originais de O Livro dos Espíritos, Kardec assevera: “Tendo-me relacionado com outros médiuns, sempre que se me oferecia ocasião, a aproveitava para propor algumas das perguntas que me pareciam mais espinhosas. Foi assim que mais de dez médiuns prestaram a sua assistência ao trabalho e foi da comparação e da fusão de todas essas respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes remoídas no silêncio da meditação, que formei a primeira edição de O Livro dos Espíritos, aparecida a 18 de abril de 1857.”

Considerando as respostas dos espíritos como opinião pessoal de cada um deles, Kardec as censurava, comparava e fundia, isto é, editava essas respostas à luz do seu conhecimento e da sua sensibilidade, fixando, assim, sua primazia no processo.

O Espiritismo é intrinsecamente dinâmico e sujeito, portanto, a um permanente processo de atualização cuja condução é, sim, responsabilidade de espíritos encarnados assim como já o fora sua codificação.

CCEPA: 70 años

Cuando en 2001, todavía eufóricos por la realización del XVIII Congreso Espírita Panamericano, conmemoramos los 65 años de esta casa, decíamos que el espiritismo no envejece, no se degenera, pues está explícito en su fisiología los mecanismos de autorregeneración y que, por lo tanto, una auténtica institución espiritista debe reflejar el dinamismo intrínseco de la propuesta espiritista. Ora, todos nosotros, los que hemos buscado rescatar esta postura progresista y librepensadora, característica esencial del pensamiento espírita, sabemos cuán difícil y solitaria ha sido la caminada. Prestigiar la búsqueda de saber y libertad, estimulando la capacidad de analizar críticamente el espiritismo, interpretándolo como una construcción cultural humana y, por lo tanto, perfectible, ha recibido como respuesta la incomprensión de sectores más conservadores del movimiento espiritista y, más que esto, la excomunión bajo la acusación de apostasía. Éste es, históricamente, el precio de la desobediencia.

La verdad, sin embargo, es que no estamos completamente aislados u olvidados. Poco a poco, compañeros de los dos planos de vida se juntan a nosotros trayendo apoyo y estímulo. En abril de 1986, en el auge de la reacción conservadora, recibimos de Joaquim Cacique de Barros, el espíritu que tenemos como nuestro orientador espiritual, un extenso mensaje psicografiado analizando la historia y las características de nuestra institución. En determinada parte del mensaje él nos decía: “Y para que seamos más entendidos, es nuestro deseo crear aquí en esta casa, que es nuestra, una mentalidad nueva. Formar, sino muchos, pero un montón de hermanos capaces de difundir una doctrina restaurada a sus bases, pero también sólidamente apoyada en los avances que la ciencia y la tecnología nos ofrezcan; un espiritismo emancipado de místicos y milagreros, todavía mercaderes de indulgencias, que eligieron un Jesús, casi siempre triste por nuestros pecados, pasivo y estático, que ellos adoran sin comprender la dinámica de su evangelio libertador”.

Veinte años después, cuando nuestra casa celebra setenta años de existencia, nuestro pequeño y valeroso grupo de colaboradores ha envejecido un poco más y el cuadro de dificultades no ha cambiado, pero es todavía y siempre con emoción que recordamos las palabras del amigo espiritual, buscando hacernos dignos de la tarea para la cual hemos sido invitados.

Parodiando al teólogo Leonardo Boff que pasó por dificultades semejantes, rindo homenaje, en esta fecha, a los trabajadores del Centro Cultural Espírita de Porto Alegre que a lo largo de estos años de luchas y dolorosas transformaciones han sido vilipendiados y han tenido que andar solos, únicamente por haber comprendido que no basta con que el espiritismo exista. Él necesita ser continuamente construido, no en contra de, pero a pesar de aquellos que lo quieren reducir a una secta cristiana más.

El Viejo de Kafka

En su obra “La Revolución de la Esperanza”, el psicoanalista Erich Fromm cita una intrigante historia del libro “El  Proceso”, de Franz Kafka.  Un hombre llega a la puerta que conduce al cielo (la Ley) y le pide al guardián que le permita entrar.  Éste le dice que no puede franquearle el acceso en ese momento. Aunque la puerta que lleva a la Ley esté abierta, el hombre se decide a esperar hasta que se le conceda el permiso para entrar. Se sienta y espera durante días y años. Finalmente está viejo y próximo a la muerte.  Por primera vez, hace la pregunta: “¿Cómo es que en todos los años que llevo aquí, nadie más que yo haya procurado entrar?”. El guardián le contesta: “Nadie más podía entrar por aquí, porque esta entrada estaba destinada a ti solamente. Ahora la cerraré”.

Los burócratas tienen la última palabra. Ésta es la moraleja de la historia de Kafka; si ellos dicen no, el hombre no puede entrar. Si hubiera tenido más que esa esperanza pasiva, habría entrado, y su coraje para ignorar a los burócratas habría sido el acto libertador.

Muchos, dice Erich Fromm, son como el viejo de Kafka. Esperan, pero no les cabe actuar segundo el impulso del corazón y, mientras los burócratas no les dan carta blanca, siguen esperando.

Los más bien informados opositores del proceso que hemos llamado de “actualización del espiritismo” no niegan la necesidad eventual de esa medida, enfáticamente recomendada por Kardec, pero sí la competencia de los humanos encarnados para realizarla. Según ellos, cabe exclusivamente a los llamados espíritus superiores, dueños de los derechos autorales del Espiritismo, cualquier iniciativa en este sentido.  De acuerdo con esta visión, a nosotros, encarnados, nos quedaría aguardar pasivamente algunas “señales del cielo” que nos autorizarían a recibir de ellos los contenidos actualizadores.

El paralelo es evidente.  El proceso idolátrico se caracteriza especialmente por la sumisión simbiótica y la preocupación neurótica de alienarse, vaciarse en beneficio del ídolo, sea éste una persona, una idea o una institución. En el caso analizado, queda clara la disposición idolátrica de los que rehúsan a los espíritus encarnados la autoridad o capacidad para administrar el necesario proceso de actualización.

No hemos conseguido encontrar ni en la obra ni en el ejemplo de Kardec a ningún amparo para esta rara e inmovilista posición. ¿Cómo aparcar, cómo interrumpir el camino como si hubiéramos alcanzado lo inalcanzable? ¿Cómo quedarse a la espera de la hipotética y discutible iniciativa de una entidad virtual, indefinible, a la que denominamos espíritus superiores?

Kardec era acción, iniciativa. La puerta estaba abierta y él la cruzó sin miedo. Construyó el Espiritismo utilizando material ya recogido por otros investigadores y, a partir de ahí, interrogando directa y metódicamente a varios espíritus.  Nunca afirmó, sin embargo, que las lúcidas e instigadoras preguntas con las cuales Kardec concebía el espiritismo naciente hubieran sido dictadas o sugeridas por los espíritus, lo que, según me parece, prueba que la conducción del proceso pertenecía a él, Kardec, teniendo a los espíritus como asesores o como “elementos de instrucción”.  En lo que se refiere a la elaboración de El Libro de los Espíritus, esto queda claro en “Obras Póstumas – 2ª Parte – Mi primera iniciación en el Espiritismo” donde Kardec, tras darse cuenta de las limitaciones individuales de los espíritus con los cuales dialogaba, afirma: “El observador ha de formar opinión en vista de las impresiones o documentos recogidos aquí y allí; ha de coleccionarlos, coordinarlos y contrastarlos unos con otros; y esto mismo fue lo que hice. Procedí con los Espíritus como hubiera procedido con los hombres; me sirvieron, desde el más pequeño al más grande, como medios de estudio; nunca como reveladores predestinados”.

Más adelante, en el mismo capítulo, refiriéndose al proceso de revisión de los originales de El Libro dos Espíritus, Kardec asevera: “Las circunstancias hicieron que me relacionase con otros médiums, y cada vez que la ocasión se me ofrecía, la aprovechaba para proponer algunas de las cuestiones que me parecían más espinosas. De este modo más de diez médiums me prestaron su concurso para este trabajo. Después de la comparación y de la fusión de todas estas respuestas, coordinadas, clasificadas y muchas veces sometidas a examen en el silencio de la meditación, fue cuando me decidí a formar la primera edición de El Libro de los Espíritus, que vio la luz el 18 de abril de 1857”.

Considerando las respuestas de los espíritus como opinión personal de cada uno de ellos, Kardec las censuraba, comparaba y fundía, esto es, editaba estas respuestas a la luz de su conocimiento y de su sensibilidad, fijando así su primacía en el proceso.

El Espiritismo es intrínsecamente dinámico y sujeto, por lo tanto, a un permanente proceso de actualización cuya conducción es, sí, responsabilidad de espíritus encarnados así como ya lo fuera su codificación.

¿Escuela o Iglesia?

“El trabajo mal hecho no tiene futuro, el trabajo bien hecho no tiene fronteras”.
Refrán Catalán

En la madrugada del 2 de abril de 1989 el túmulo de Allan Kardec en el cementerio Père Lachaise, de Paris, fue damnificado por un atentado a bomba, posteriormente reivindicado por un autodenominado “Movimiento por la Supremacía de la Razón”. La naturaleza emblemática de aquel insólito acontecimiento se quedó grabada en mi mente, principalmente por la inexistencia de cualquier repercusión en el ambiente espírita. ¿Cómo entender que en toda la cosmopolita París aquel “movimiento” no encontrase nada más representativo de la irracionalidad humana que el túmulo de Kardec? ¿Cómo explicar, por otro lado, que el Movimiento Espírita no cuestionase las razones de esta absurda elección; no buscase reflexionar sobre ella más profundamente? Para los autores del atentado, el Espiritismo parecía ser simple y peligrosa creencia y, por lo tanto, un insulto a la razón. Ésta, por lo menos, sería la forma por la cual se veía a los espíritas en aquel contexto. Analizando el hecho no podemos desconsiderar la posibilidad de que los espíritas hubieran fracasado en la divulgación de una imagen más verdadera de la filosofía espírita, criando así espacio para la manifestación brutal de este anacrónico “fundamentalismo racional”.

Ora, ninguna filosofía espiritualista es más ventilada, no sectaria, progresista y racional que el Espiritismo, cuyos principios fundamentales, por su logicidad y clareza, poseen características que pueden ser fácilmente universalizadas. Sin embargo, la dura realidad obstaculiza esa perspectiva auspiciosa. Un siglo y medio después de su lanzamiento, el Espiritismo sigue marginado. Su propuesta filosófica, fundamentada en una ciencia de observación y con un método de pesquisa y reflexión centrado en la duda, todavía no ha conseguido sensibilizar los medios académicos. Esta resistencia se debe a múltiples factores. La mayoría de ellos, sin embargo, nada tiene que ver con lo que el Espiritismo realmente es, o sea, se lo discrimina mucho más por la apariencia que por la esencia.

Pese al enorme esfuerzo del pedagogo Allan Kardec, la identidad esencial del Espiritismo sigue siendo un problema no resuelto.

¿Sería el Espiritismo solamente una secta cristiana más, con algunos perfeccionamientos, compitiendo en el mercado religioso? Nosotros creemos que no y, por ello, insistimos tanto en el estudio de la Codificación con el objetivo de rescatar el proyecto original del codificador y descubrir, en fin, qué es el Espiritismo.

Descubrir es alejar la cobertura, penetrando hasta las bases, las fundaciones de la construcción espírita, conocer el proyecto del arquitecto e incluso el propio arquitecto para saber sobre sus motivaciones y las influencias que recibió.

Cuando usado, este proceso prospectivo nos pone ante una realidad perturbadora. La obra no corresponde al proyecto. Hay discrepancias entre la base y lo que sobre ella se construyó. Se irguieron paredes donde no hay bases y, paralelamente, hay bases sobre las cuales nada se construyó. Todo se pasó como si los constructores no conocieran bien el proyecto del arquitecto o entonces, aun conociendo, decidieran, por su cuenta y riesgo, hacer adaptaciones y añadir lo que les pareciera conveniente para la funcionalidad de la construcción. En lugar de una escuela decidieron edificar una iglesia.

Ora, este procedimiento que subestima la competencia del proyectista de la obra o que interpreta frívolamente sus directrices es, como mínimo, imprudente y puede resultar en consecuencias desastrosas.

Emille Durkheim, uno de los padres de la sociología, dijo en la obra “Las formas elementales de la vida religiosa” que “Una sociedad no está simplemente constituida por la masa de individuos que la componen, por el suelo que ocupan, por las cosas de que se sirven, por los movimientos que efectúan, sino, ante todo, por la idea que se hace de sí misma”. Para comprender la forma por la cual somos vistos es necesario reconocer que la autoconsciencia que un grupo elabora de sí mismo es uno de los factores explicadores de su comportamiento. ¿Qué idea forma el movimiento espírita de sí mismo? ¿Cuál la autoimagen predominante determinando nuestro comportamiento y la consecuente imagen que proyectamos? ¿Escuela o iglesia?

No es necesario ser observador muy astuto para percibir la predominancia de actitudes y de modelos de comprensión que discrepan del auténtico pensamiento espírita, como sean: postura fuertemente salvacionista sobrevalorando conceptos como Tercera Revelación, Consolador Prometido, Brasil corazón del mundo, etc.; lenguaje afectado, religioso, de quien habla en términos de eternidad; una cierta arrogancia, travestida de humildad, característica del poseedor de la verdad; valorización de la fe en detrimento de la razón y, por último, el tan reprobado por Kardec, “espíritu de sistema”, que nos dispensa de la verificación experimental.

Si concordamos que el Espiritismo no guarda relación estrecha con esta imagen, algo deberá ser hecho, y por nosotros espíritas. Es necesario remover esta envoltura, esta máscara que esconde el pensamiento espírita para que un día su esencia sea su apariencia.

El Espiritismo, como se ve, necesita ser descortinado por el estudio de sus fundamentos. La cortina siendo alejada, una luminosidad mayor revelará la belleza, la armonía, la simplicidad y la amplitud del proyecto espírita así como la genialidad de su arquitecto, quien estableció los fundamentos de una doctrina realmente nueva, actual, ventilada, dinámica, funcional, progresista, libertaria, no sectaria, optimista.

El Espiritismo fue bien hecho y tiene futuro. El problema es que fue mal empaquetado.