Um alpinista solitário buscando fugir, durante a noite, de uma tempestade de neve na montanha que escalara, perde o equilíbrio, precipita-se no abismo e é, então, salvo pela corda de segurança que ancorara na rocha gelada. Suspenso pela corda, em completa escuridão, sem condição de retornar e desconhecendo a profundidade do abismo, deixou-se ali ficar, em angustiosa espera, pois sabia que o frio intenso o mataria em poucas horas e que a única alternativa para esta morte lenta seria desvencilhar-se da corda e saltar para uma morte rápida.
Dominado pelo pavor, naquela vigília que parecia não ter fim, ouve uma voz forte que, superando o medonho ruído da nevasca, ressoa autoritária na sua mente determinando: – Salta, salta e te salvarás.
Várias horas depois, quando a luz do dia retornou e a tempestade amainou, uma equipe de resgate encontrou o trágico personagem já sem vida, ainda agarrado à sua corda e com os pés suspensos no ar a somente cinquenta centímetros do solo firme.
A fé o convidava ao salto salvador mas, naqueles momentos de angústia e solidão, prevaleceram os argumentos da razão. Esta lhe acenava com a possibilidade, remota é verdade, de sobreviver ao frio e ser resgatado.
Este episódio emblemático, cuja origem não recordo, nos coloca diante do problema da fé que, na visão do pensador dinamarquês Soren A. Kierkegaard (1813-1855) é, definitivamente, um modo de existir que nos põe em relação com o absurdo. Para ele o acesso à verdade suprema depende da crença no absurdo, naquilo que Paulo de Tarso chamou de “loucura”. Por isso devemos dizer “creio porque é absurdo“.
A angústia que acompanha a fé estaria ilustrada, no entender de Kierkegaard, no episódio bíblico no qual Deus pede a Abraão o sacrifício de seu único filho Isaac para demonstrar a sua fé, o que, segundo a ética dos homens, é absurdo e desumano. Abraão não hesitou: aceitando o absurdo da exigência divina saltou da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Para este pensador, a fé cristã é superior à ciência porquê indica a certeza mais alta, uma certeza que se refere ao paradoxo, portanto ao inverossímil. A fé representa, assim, um salto no escuro e, sendo a crença inseparável da angústia, para Kierkegaard o temor de Deus é inseparável do tremor.
Os episódios que ilustram esta reflexão podem ser apreciados de duas maneiras. A visão fideista, desprezando a razão e privilegiando a fé no conhecimento das verdades, certamente aprovará a obediência de Abraão e lamentará a desobediência do alpinista. Já uma visão racionalista, livre pensadora e até mesmo o nosso conhecido “senso comum”, considerará perfeitamente razoável a resistência do infeliz alpinista ao comando daquela voz, ao mesmo tempo em que se horrorizará com a absurda e desumana ordem dada a Abraão que, por isso, deveria ignorá-la.
O confronto entre estas duas visões, que representam momentos distintos na história do pensamento humano, é evidente. A visão medieval, teocêntrica, em que a fé é, sobretudo, submissão, obediência, é desafiada, a partir da renascença, pelo racionalismo humanista. O homem, adolescente rebelde, propõe a Deus um novo contrato em que a parceria substitua a obediência cega, pois ele já “não aceita mais crer de olhos fechados pois quer saber de olhos abertos”. Descobre-se, assim, como legítimo filho de Adão que renunciou ao paraíso pela liberdade de escolher, de errar, de crescer.
A partir deste momento, a necessidade de uma síntese se torna crescentemente imperiosa. Para isto, porém, seria necessária uma mudança na forma de ver o fenômeno, adotando um raciocínio dialético em substituição ao lógico.
O Espiritismo surge no momento histórico em que esta síntese se torna possível. O fideismo tinha muito poucos defensores e, por outro lado, era bem menor a paixão pela razão, como único meio de se chegar ao conhecimento da realidade.
O jornalista Luiz Signates em um excelente e fundamentado artigo nos fala da conciliação, no Espiritismo, desses conceitos antagônicos que se conjugam na explicação da realidade, resultando numa fé aberta, dialogal que forma um par dialético inseparável com a razão.
A natureza sintética do Espiritismo, tão bem destacada por Leon Denis, torna-se evidente no conceito de “fé raciocinada” que Kardec incorporou ao pensamento espírita.
A visão dinâmica e livre pensadora oferecida pelo Espiritismo nos convida enfaticamente a superar dialeticamente o conflito entre a postura de submissão alienante do fideismo e a arrogância racionalista, com aquilo que José Herculano Pires chamou de fideismo-crítico, ou seja, a nossa fé raciocinada.
Analisando o aparente paradoxo desta expressão na obra A Revolução da Esperança, o psicanalista Erich Fromm diz que a fé é irracional quando é submissão a determinada coisa que se aceita como verdadeira independentemente de sê-lo ou não. O elemento essencial desta fé é o seu caráter passivo. Já a fé racional refere-se ao conhecimento do real que ainda não nasceu; baseia-se na capacidade de conhecimento e compreensão que penetra a superfície e vê o âmago. A fé racional, continua ele, não é previsão do futuro; é a visão do presente num estado de gravidez; é a certeza sobre a realidade da possibilidade.
Sintetizando o modo pelo qual o Espiritismo aborda o problema da fé, poderíamos dizer, parafraseando Herbert Spencer, que “existe uma alma de razão nas coisas da fé e uma alma de fé nas coisas da razão”.